Por Fernando Del Angeles

Em 13 de Novembro de 2019, a Netflix liberou sua primeira temporada de The Witcher, série em 8 episódios baseado na série de livros de Andrzej Sapkowski (eu copiei e colei do google, porque nunca que iria conseguir escrever este nome), que também deu origem à série de games lançados pela CD Projekt RED, games estes – principalmente o terceiro – que popularizaram a franquia, deixando o público ansioso pela série.

Como em todos os posts baseados em alguma mídia, a chance de ter spoilers é grande, então leia a partir daqui por conta em risco.

A série nos apresenta a história de Geralt de Rívia, um bruxo (ou witcher) que usa seus poderes e habilidades para caçar monstros por dinheiro; Yennefer, uma jovem excluída que apresenta uma aptidão para magia e é levada para ser treinada por feiticeiros, e Ciri, uma jovem princesa com poderes a serem descobertos, que tem que lidar com a queda de seu reino. Porém a série percorre 3 linhas temporais diferentes, alternando entre os personagens até as 3 linhas se unirem em uma só no final da temporada.

Isso gerou um pouco de confusão para alguns, principalmente pela falta de clareza sobre as linhas temporais, não tinha uma legenda “há 10 anos atrás” nos episódios ou algo assim, mas os detalhes que contavam esse tempo estavam lá e iam sendo apresentados episódio após episódio.

Mas como o assunto aqui é RPG, vamos tentar trazer essa proposta de linhas temporais diferentes para nosso hobby

RPG com linhas temporais diferentes

Essa ideia, de narrar em linhas temporais diferentes, já havia me passado pela cabeça alguns anos atrás – cheguei inclusive a tentar algo, não como apresentado em The Witcher; mais abaixo vou falar dessa experiência – mas com a série as ideias voltaram a fervilhar.

É algo que pode ser complicado para se levar a mesa? Com certeza, mas talvez algumas ideias de como administrar isso sejam úteis. Claro, não precisa ser completamente igual à série, mas esta pode ser uma boa forma de contar uma história maior dentro do seu cenário.

Personagens x Mundo

Primeiramente acho que temos que decidir é: que história queremos contar? A história de seus personagens? Ou a história do cenário em si?

Em The Witcher, apesar de termos o bruxo como fio condutor, a ideia nesta primeira temporada é apresentar um plano maior, desenvolver mais as outras duas personagens principais e contar a história do cenário – ou pelo menos daquele momento do cenário – e dos fatos que levaram até lá, tanto que enquanto as histórias de Yennefer e Ciri são mais lineares, a parte da história que foca em Geralt é mais solta, apresentando pontos importantes da história, mas sem se preocupar com uma ligação entre sua história a não ser o próprio Geralt.

Em seu RPG, você pode se focar na história a ser contada, e aqui talvez você não precise dos mesmos personagens em cada uma das linhas temporais, como é, em grande parte, a série. A campanha de jogo pode estar dividida em dois grupos de personagens, um lidando com algum evento importante e outro com as consequências do que aconteceu. Os personagens da linha temporal mais antiga podem inclusive aparecer na da linha temporal mais recente Mais velhos, mortos, presos? Como isso aconteceu?

Conforme seus jogadores se aventuram pelas duas linhas linhas temporais e vão descobrindo o que acontecerá no futuro, a questão maior é: como tudo chegou a esse ponto?

Claro, o problema é como explicar que algo que foi apresentado no futuro aconteceu de forma diferente no passado? O primeiro ponto aqui é tentar ser vago no futuro, mostrar fatos em escala macro, onde os heróis do passado não vão ter como interferir, apesar de ainda poderem participar indiretamente, podendo ser apenas espectadores ou agentes de ações indiretas. Aquela missão que fizeram para resgatar uma joia mágica para o mago conselheiro do rei era o que ele precisava para controlar a mente do rei e tomar controle do reino. Ou simplesmente eles estão tomando conta de seus negócios quando passam pela região e percebem como o povo está confuso com as ações recentes do rei, que não parecem como algo que ele faria…

Outro ponto é jogar com os mesmos personagens. Tudo que foi dito acima ainda é válido, entretanto você pode ter fichas diferentes. E aqui o foco pode ser outro: em vez de contar uma grande história, o objetivo pode ser a evolução dos personagens, passando por várias aventuras diferentes e como vão chegar no ponto final. Na linha temporal mais recente você vai mostrar no que os heróis se tornaram e na linha temporal mais antiga vai mostrar os eventos que levaram até isso.

Mais uma vez, o problema maior é como chegar do ponto A ao ponto B sem que os jogadores não mudem completamente a história. Uma dica é que eles mesmo criem o status de seu personagem no futuro. O personagem começa como um guerreiro novato na campanha do passado. No presente – ou futuro – ele quer ser o capitão da guarda da cidade; O aprendiz de mago agora tem seu próprio laboratório e assim por diante. Você como mestre deve apenas dar os meios para isso: o antigo capitão da guarda era corrupto e o grupo conseguiu levá-lo à justiça; um mago louco está fazendo experimentos na cidade e depois de derrotá-lo o laboratório dele fica vago…

Como Narrar

Aqui sugiro duas abordagens. A primeira, intercalando as sessões ou arcos. Jogue uma sessão no passado e na próxima avance no tempo, depois volte e repita o processo. O ideal é que as sessões sejam fechadinhas, não ficando a história pela metade para então ter um vislumbre do futuro – ou o contrário, jogar histórias mais recentes primeiro e depois ir para o passado.

Desta forma se aproveita melhor a proposta de linhas temporais, porém é mais difícil de se controlar, e chega naquele problema que falei acima, jogadores indo por caminhos diferentes do que se apresenta em uma das linhas.

A segunda é fazer campanhas ou arcos separados. Você narraria uma história completa ou arco completo e depois faria a passagem de tempo, evoluindo os personagens e contando uma história em outra linha temporal com os mesmos personagens, mas lidando com as ações do passado. Aqui também podemos citar Naruto e Naruto Shippuden como forma de usar esse método, onde acompanhamos parte da história com os personagens crianças e depois, anos mais tarde com eles mais desenvolvidos.

Assim você terá mais controle narrativo das histórias e das ações, mas não vai aproveitar tanto a narrativa com linhas temporais diferentes, já que seriam jogos diferentes.

Interlúdios

Se você joga Savage Worlds, já deve estar ciente da regra de interlúdios. Para quem não conhece, é uma regra narrativa onde os personagens contam histórias passadas de seus personagens, sempre relacionadas a um tema específico que é determinado pelo naipe das cartas sacadas.

Mas isso também pode ser usado para incrementar essa ideia de linhas temporais diferentes. Neste caso é possível usar as opções da regra de interlúdios e, em vez do personagem apenas contar uma história do passado, ele jogaria essa história. Para isso, o ideal é que o narrador vá contando uma história paralela que vai sendo jogada conforme aparecem as oportunidades de interlúdio. Seria como uma história dentro de outra história, no estilo “lembram daquela vez que derrotamos o Rei Lich?”

Essa história paralela não precisa estar conectada diretamente a história principal, podendo servir apenas como uma forma de conectar certas ideias, táticas e situações, algo como “lembro sim, nós o derrotamos com tal plano”, e então esse tal plano servir como um auxílio para a história atual ou apenas como um comentário interessante e/ou engraçado como “Isso lembra aquela vez em Budapeste”, “Nós nos lembramos de Budapeste de maneiras diferentes” – ou algo assim.

Se usadas na história principal de alguma forma, essas histórias paralelas podem gerar recompensas dentro da mecânica do jogo.

Minhas Experiências

Eu tive duas experiências com linhas temporais diferentes, nenhuma das duas com tantas alternâncias como The Witcher, mas que podem servir de ajuda nesse texto.

Uma delas, comigo narrando. A minha ideia era começar jogando com os personagens crianças, contando uma parte da história da infância deles e depois avançar o tempo e já contar algo com eles mais adultos. Digo que era minha ideia porque não chegamos a dar continuidade na segunda parte da ideia com eles adultos.

A segundo, comigo jogando, foi uma oneshot investigativa nos anos 30, onde nossos personagens estavam sendo acusados de um crime, mas não se lembravam de nada das últimas 48 horas, então haviam duas linhas temporais: uma que estávamos sendo interrogados pela polícia e a outra em que íamos lembrando dos fatos conforme íamos jogando e servia como nossa resposta à polícia do que aconteceu.

Esta segunda foi uma experiência completa e muito bacana, uma forma diferente de contar a história de jogo. Não houve muito problema em fatos desencontrados porquê inicialmente sabíamos apenas que houve um crime e estávamos envolvidos, todo o resto foi sendo contado com nossos flashbacks.

Sobre fatos desencontrados

Ao decorrer do texto falamos bastante sobre a grande problemática desse tipo de narrativa, lidar com um final já definido e como chegar até lá sem que as histórias não se desalinhem. Meus dois centavos sobre como lidar com isso:

Poucas informações. Contar pouco sobre o que aconteceu, apenas uma panorama geral e então ir preenchendo as lacunas com o que for sendo jogado no passado – como no exemplo que citei acima – vai ajudar bastante e não ter informações conflitantes.

Retcons. Algo que foi feito pelos jogadores não bate com o que deveria ter acontecido? Um dos jogadores pode simplesmente falar “não foi bem assim que aconteceu” e vocês podem jogar a mesma cena novamente, com um ponto de vista diferente e com o resultado que deveria acontecer. Essa é uma estratégia safada? Não necessariamente, isso acontece o tempo todo em nossas vidas, as vezes lembramos de fatos de uma forma diferente do que aconteceu. Mas para usar essa abordagem é necessário ter um grupo que concorde em fazer tais alterações e também não se pode abusar disso, para não ter que editar toda e qualquer cena que aconteceu.

E você, tem alguma experiência com esse tipo de narrativa?