Por Fábio Medeiros
A série Periféricos está no ar pela Amazon Prime, e é inspirada na obra de William Gibson, autor que escreveu a trilogia Sprawl. O primeiro livro da trilogia é Neuromancer, e foi um grande marco para a ficção científica, sendo o título que definiu o gênero cyberpunk. Periféricos tem suas semelhanças com essa trilogia e outros livros de Gibson, e é focada em dois irmãos que vivem num futuro não muito distante, com dificuldades que mesmo hoje conhecemos para viver em nosso mundo. Burton Fisher ganha algum dinheiro fazendo bicos jogando videogames em realidade virtual, e Flynne Fisher tem um emprego numa loja que imprime encomendas com impressora 3D. Ambos moram juntos e cuidam de sua mãe enferma. Muita tecnologia é utilizada pelos personagens e é perceptível no mundo, seja o contato com o mundo virtual, a bicicleta elétrica, o uso de drones e impressoras 3D, ou até mesmo a utilização de uma moto com uma cadeira de rodas por um dos personagens coadjuvantes. A maior parte dessas tecnologias já está presente em nossos dias, mas na série elas ganham uma característica de popularização e massificação da sua utilização que confere uma ideia de avanços tecnológicos em comparação com o nosso mundo atual.
Na Periferia
O nome da série, “Periféricos”, é muito apropriado por ser o nome dado aos aparatos utilizados para que os usuários possam interagir com o computador. Mas também porque pode ser identificado como o termo utilizado para se referir aos grupos marginalizados, que não possuem o acesso aos benefícios promovidos pelo avanço da sociedade. Na série esta discrepância é bem destacada a partir das diferenças entre ricos e pobres. Enquanto a família Fisher sofre para conseguir se manter, alguns grupos têm privilégios que promovem um contraste e destacam os problemas sociais que persistem e se agravam nesse futuro imaginado. Esta característica pode ser levada para um cenário de RPG cyberpunk, apresentando um mundo onde algumas questões não resolvidas são exacerbadas, tornando parte relevante do ambiente. O gênero cyberpunk exala frequentemente essa ambientação, onde a tecnologia está presente de maneira avassaladora, sendo capaz de facilitar e mudar o mundo, mas está acessível para apenas alguns grupos. Enquanto vemos confortos sendo aproveitados por parcela da população, outros têm dificuldade na sua própria existência e não conseguem solucionar por não fazer parte dos privilegiados.
Em Retropunk RPG existe um chamado, um sinal que faz os personagens dos jogadores despertarem, sentindo que há uma falha na organização da sociedade. Isto não precisa ocorrer durante as sessões de jogo, pode fazer parte do histórico do personagem, até porque todos já iniciam sendo considerados Defeitos para o sistema. Encarar uma doença e a impossibilidade do sistema de dar suporte à pessoa é um motivo claro para que um personagem busque de maneira ilícita a sua inclusão (ou da pessoa doente que faz parte da sua vida) entre os cidadãos que teriam acesso aos recursos de saúde.
Puxando os Fios
A busca por igualdade e ambição também podem ser situações que despertam o personagem e o fazem contestar a organização da sociedade. Além disso, é possível pensar que ele estava no lugar e hora errados, e acabou presenciando um evento que deflagra uma situação de corrupção ou algum outro crime. Por esse motivo ele começou a ser caçado por autoridades, ou talvez tenha perdido o acesso a matriz. Desta forma o personagem começa a abrir os olhos para essas discrepâncias durante o jogo, enquanto tenta sobreviver fora do sistema.
O Retropunk é um RPG bem interessante por contar com esse contraste na sua própria forma e conteúdo. Os temas abordados são sempre de rebeldia, de luta contra um sistema pesado e opressor, mas sua estética retrofuturista se apoia em cores fortes e vivas. O cenário é composto por letreiros em neon brilhando ao lado de pessoas em tons de cinza. Enquanto o jogo apresenta um cenário altamente tecnológico, porém decadente em sua moral, com um descaso à vida e à individualidade; o RPG é jogado sem a necessidade de utilização de grandes tecnologias. Nada além de papel, lápis e dados multifacetados é mandatório. Ao mesmo tempo, o foco para o jogo deve sempre ser definido a partir dos interesses dos jogadores, que dialogam sobre o que desejam encontrar e definem os rumos da narrativa a partir de suas decisões. A proposta sobre o tema que será central na narrativa, qual será o ritmo e o que os jogadores esperam experienciar deve ser discutido mesmo antes do jogo iniciar.
O começo e o fim
No início da primeira sessão é recomendado que os jogadores conversem para alinhar suas expectativas, definindo os rumos da história em conjunto, de maneira colaborativa. Este momento também serve para definir o que deve se manter fora da narrativa. Qualquer questão que seja vista como sensível para alguém no grupo, pode ficar demarcada como algo que não deve ser abordado durante o jogo. Com a participação e ciência de todos, os temas indesejados serão mais facilmente evitados durante o jogo. Mesmo que por algum motivo algo surja durante a narrativa, qualquer um dos jogadores podem lembrar a todos que este tópico não deve ser abordado. O Retropunk até mesmo sugere o uso de um kit de ferramentas para segurança para jogos de RPG, um compilado criado por Kienna Shaw e Lauren Bryant-Monk que auxilia na delimitação do que pode ou não ser abordado durante os jogos narrativos, de acordo com cada grupo.
Esse contraste em que os jogadores convivem como iguais, em harmonia e se divertindo ao produzir narrativas que destacam uma sociedade cheia de desigualdades e sofrimento é extremamente relevante para demonstrar que é possível refletir sobre os rumos do nosso mundo, e que dessa forma conseguimos criar outros caminhos. A série Periféricos é uma fonte rica para a introdução de ideias pertinentes ao gênero cyberpunk em jogos de RPG. Muitas delas eu não abordei aqui para que vocês possam assistir sem grandes “spoilers”.

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