Por Encho Chagas

Desde a primeira vez que joguei RPG, me incomodei com a separação entre Mestre e jogadores. E conforme fui me aprofundando no estudo de jogos, principalmente em comparação com absolutamente qualquer outro jogo, digital ou de mesa, um indivíduo participante de um jogo não ser considerado jogador é algo no mínimo curioso. Vamos combinar: por mais que um Mestre desempenhe uma função diferente dos demais, ele obviamente “joga”, no stricto sensu da palavra.

Ainda assim, do ponto de vista de game design, de fato o Mestre não é um jogador. Ele é o motor do jogo, tanto o representante das histórias e seres de um mundo fantástico como o avatar das mecânicas e da física daquele universo.

Este é o texto onde vamos desmistificar esta figura tão primordial dos jogos de RPG, desmontando-o função por função, até literalmente não restar nada: o caminho até os famigerados jogos de RPG sem Mestre. Para muitos, ainda é surreal o conceito de existir um RPG sem um Mestre, e aqui vamos explicar como isso acontece.

Mas pra quê fazer isso? Por quê não deixar o jogo como eu jogo do jeito que ele é e pra quê ficar destrinchando ele assim? Simples: para experimentar. Para descobrir mais sobre o potencial destes jogos. Vamos conversar sobre o papel do Mestre nos jogos clássicos e então estudar o que podemos fazer para incrementar a criação de histórias, para aliviar o peso sobre as responsabilidades do narrador, e até criar novos RPGs com características únicas.

As funções do Mestre em arquétipos

Comparado ao design de qualquer outro tipo de jogo, o RPG é o único que depende desse jogador especial que desempenha todas as funções cruciais para o andamento do jogo. Mas que funções são essas?

Assim como “classes” de personagem, vamos dividir o Mestre em vários arquétipos que representam algumas funções que ele representa dentro do jogo:

  • O Árbitro: O zelador das regras do jogo.
  • O Contador de Histórias: Aquele que descreve o universo fantástico aos jogadores.
  • O Maestro: O condutor da experiência lúdica.
  • O Antagonista: O que se opõe aos jogadores em forma de obstáculos.
  • O Estrategista: O que avalia e propõe desafios, além de cuidar da progressão do jogo.

Algumas funções podem parecer similares, mas são diferentes em relação aos seus propósitos dentro do game design do jogo, requerendo soluções diferentes quando modificadas ou removidas.

O Árbitro

Quando os primeiros RPGs foram inventados, ainda como mecânicas narrativas inseridas em wargames, a figura que recebeu a responsabilidade de controlar todos os personagens não-jogadores era justamente o árbitro: uma parte isenta de interesses no resultado da partida (isso obviamente se torna questionável no RPG, mas vamos discutir melhor mais à frente).

Nos wargames, enquanto dois jogadores batalhavam com seus exércitos de miniaturas, o árbitro tinha a função de garantir que aquele duelo fosse justo, equilibrado, e que ambos seguissem as regras. Nos primeiros RPGs, cada jogador selecionava apenas uma unidade para o representar, e todas as outras iam para as mãos do árbitro a fim de representar os oponentes daquele grupo.

O árbitro é o único na mesa que precisa saber todas as regras, apesar de ser desejável aos jogadores que eles também as entendam para facilitar o fluxo do jogo. Mas mesmo que um jogador saiba até mais do que o Mestre, ele normalmente também tem o poder de alterá-las e adaptá-las mesmo durante a partida caso julgue que será melhor para o andamento da partida.

Existe uma longa e exaustiva discussão entre RPGistas dos jogos clássicos e dos jogos indie sobre a famigerada Regra de Ouro. O argumento é que o Mestre ter o poder de mudar ou ignorar as regras durante uma partida é um sintoma de que as regras daquele jogo são falhas e ineficientes, basicamente uma muleta que permite ao desenvolvedor do jogo não se preocupar com a excelência de suas regras, jogando tal responsabilidade para o Mestre resolver na hora. Fato é que tal tradição veio já da origem do RPG, e permanece engessada na cultura do jogo.

O Contador de Histórias

A arbitragem já era uma função que existia antes do RPG, mas a grande adição foi, de fato, a construção de histórias para além da sequência de ações de combate. O Mestre narra o que está acontecendo, dá a situação aos jogadores, e estes descrevem como lidam com as situações propostas, tomando decisões que potencialmente alteram o rumo da narrativa.

Apesar do que se diz sobre o RPG ser um jogo de criar histórias em conjunto, efetivamente o design dos jogos tradicionais dão essa responsabilidade ao Mestre. Aos jogadores cabe reagir às situações apresentadas e “criar” apenas no sentido de encontrar soluções criativas aos desafios. O único momento real de criação livre, a criação da origem dos personagens, são suplementares, para não dizer frequentemente inúteis para o funcionamento do sistema do jogo. E ainda assim sob autorização ou não do Mestre.

Claro, jogadores e grupos mais experientes costumam ter a prática de roubar o mando de cena e sugerir o que pode acontecer, ou simplesmente tomar a liderança e guiar o grupo por um caminho diferente do estipulado pelo Mestre. Entenda que isso, normalmente, é uma aplicação da Regra de Ouro, discutida na seção anterior, pois a dinâmica do jogo não foi desenhada para ser assim: acontece pois há uma abertura para flexibilização das regras. O Mestre tem todo o poder para “forçar” os jogadores pelo caminho projetado ou recusar a proatividade dos jogadores.

O Maestro

O árbitro e o contador de histórias são funções dadas ao Mestre explicitamente pelas regras do jogo. Porém, outras funções derivam da própria dinâmica de um jogo cooperativo. Entra em cena o maestro: aquele que vai dar ritmo ao jogo, cadenciar os eventos de forma razoável, tentar dar o mesmo tempo e oportunidade a cada jogador para brilhar e se mostrar útil ao funcionamento do grupo, criar urgência em momentos cruciais, etc.

O maestro é a função mais complexa, e demanda experiência do Mestre. Apenas seguir as regras garante um jogo unicamente mecânico, desafio após desafio, sem o espaço de interpretação de personagens e desenvolvimento de contexto. Muitos jogadores se dividem entre os que gostam da estratégia e os combates e aqueles que prezam pela história e interpretação, mas os sistemas tradicionais apenas apresentam regras para a simulação do universo e não para a condução narrativa. Isso está no colo do Mestre.

O Mestre é a engine do jogo, e suas palavras não são apenas falas e descrições. Depende dele organizar o universo virtual que é transmitido por suas palavras aos jogadores, para que cada um compartilhe a mesma projeção desse mundo em sua imaginação.

O Antagonista

Naturalmente, uma vez que os jogadores se unem em um grupo com o mesmo objetivo, a outra parte é colocada na posição de antagonista. Essencialmente o Mestre nunca foi desenhado para ser uma figura inimiga dos jogadores, em posição de competição. Ele possui um papel isento, gerando conflitos para os personagens, mas ao mesmo tempo dando as ferramentas para que eles consigam avançar sobre cada desafio. Se opõe mas também torce pelos jogadores.

Antagonismo é uma função crucial em qualquer jogo. Em jogos competitivos o antagonismo é mais óbvio, em que cada jogador se opõe aos demais, mas em jogos cooperativos é necessário que seja apresentado pelas regras do jogo. Apesar da maioria dos sistemas apresentarem listas de inimigos, armadilhas, e desafios em geral, o Mestre precisa apresentar esses conflitos de forma razoavelmente factível dentro da ficção do jogo… e para isso não existe regra alguma.

Esse é o ponto em que o antagonista se difere do contador de histórias, e por isso precisam ser tratados como funções diferentes no game design: ao contador só cabe apresentar a ficção aos jogadores, e ao antagonista cabe gerar o desafio dentro da narrativa. O quanto este desafio será justo, balanceado, e como ele progredirá ao longo da campanha já se torna parte da função do estrategista, a ser apresentado a seguir.

O Estrategista

Muitos sistemas oferecem tabelas, números, níveis, ou vários tipos de mecanismos para indicar o balanceamento matemático do jogo. Porém, em jogo, não é o suficiente apenas soltar adversários para que os personagens enfrentem: o jogo depende de uma certa habilidade tática do Mestre para manter os combates e outros conflitos razoavelmente desafiadores.

Ele não só precisa montar previamente um desafio adequado, como ainda precisa controlar cada uma de suas várias peças, se adaptando aos movimentos e cartas na manga dos jogadores.

Aliviando as responsabilidades do Mestre

Como jogadores e Mestres veteranos, somos acostumados aos jogos clássicos. Vivemos a cultura e as tradições dos RPGs primordiais e não costumamos questioná-los. Por isso é comum que jogos novos bebam muito dessa fonte e mantenham tais características, por já fazer parte do que é um jogo de RPG.

Porém, um novo jogo vai precisar se apresentar para seu novo jogador, e principalmente para seus novos Mestres. A menos que você conte que Mestres veteranos de outros sistemas vão espontaneamente migrar para o seu, você vai precisar formar novos jogadores… e se a curva de aprendizado é tão complicada, porque ele iria abandonar seu sistema favorito no qual ele já investiu tanto tempo e dinheiro?

E quantos grupos terminam por ausência de Mestres experientes? Nenhum outro tipo de jogo depende da presença de um indivíduo veterano para acontecer… só o RPG. E essa é uma das grandes razões para boa partes dos RPGs indie questionarem e reduzirem a carga de responsabilidade do Mestre, gerando experiências únicas e inovadoras no processo.

O mais comum é diluir os papéis de antagonista e contador de histórias entre os jogadores, deixando o Mestre apenas como maestro, árbitro, e estrategista. Com mecânicas que roubam o poder narrativo para o jogador, como o Turno do Mestre e Jogadores em Mouse Guard, ou as consequências pré-programadas nos movimentos dos jogadores, presentes nos RPGs Apocalypse World Engine. Outros jogos ainda tentam brincar até mesmo distribuindo todos estes papéis, inclusive deixando jogadores responsáveis por parte das regras.

Muitos jogos também mecanizam os poderes do Mestres, apresentando regras e comandos para controlar o que ele pode ou não fazer. Apesar do Mestre veterano a princípio achar isso “limitador”, essa experiência dá a ele as características fundamentais para torná-lo também um jogador: ele precisará fazer escolhas, precisará trabalhar com os recursos e comandos que tem.

O RPG sem Mestre

Para um jogo se tornar completamente independente da figura do Mestre, algo impensável para muitos RPGistas veteranos, não é exatamente tão complexo. Pense que quase nenhum jogo de tabuleiro possui uma figura de Mestre. O único real desafio do RPG é a manutenção da composição virtual que os jogadores estão fazendo em sua imaginação. Sem um indivíduo estabelecido como ponto de referência, afirmando o que está ou não acontecendo, as regras precisam dar uma ajudinha nesse sentido. Se o jogo oferece ferramentas claras para os jogadores inserirem novos elementos na ficção e verificarem se tudo está como eles imaginam que esteja, o restante é razoavelmente como num RPG qualquer.

Porém aqui vem o porquê de tantos designers indie advogarem contra a famigerada Regra de Ouro: no momento em que a figura de referência deixa de existir, não existem limites para se “quebrar regras”. Logo… quebrar regras precisa estar fora do jogo. Uma vez que todos seguem o acordo, não há o que ser discutido, logo não há necessidade de um árbitro. Ou de um maestro. Ou de qualquer outra função.