“City of Mist é um jogo sobre pessoas” foi escrito por Ray Galvão, tradutora oficial da versão brasileira (twitter: @rayraygalvao)

Seria muito fácil eu chegar aqui pra vocês falando que City of Mist é um jogo fantástico, com um cenário incrível e envolvente e muitas ideias e possibilidades interpretativas a serem exploradas, uma parada tão supercalifragilisticexpialidoce que eu fico até sem fôlego. Seria fácil, daria um texto ótimo, e todo mundo ficaria satisfeito. Mas, para desespero do Fernando (que, francamente, já devia esperar, vindo de mim), eu vou na verdade contar um causo.

E se o que você queria era só uma avaliação objetiva, saiba que eu quem traduzi o jogo, então tenho a autoridade de quem se debruçou sobre cada detalhe do cenário e do sistema para dizer que é incrível, você vai amar, por favor jogue. É um misto de Deuses Americanos com Cidade Invisível com Apocalypse World, com toques de Brumas de Avalon e um quê daqueles filmes antigos de detetive, tudo isso amarrado por um sistema Powered By The Apocalypse (PBTA), que, pra quem não sabe muito bem, é aquele tipo de RPG em que a ficha de personagem tem frases e conceitos em vez de números e valores, e é preciso encaixar esses conceitos no contexto narrativo para empoderar suas ações. Ai, gente, não importa. Detalhes, detalhes. Só confiem na call. E prestem atenção nisso aqui, que é importante (é tipo minha missão como emissária desse jogo passar essa mensagem):


Empolgada com o sistema e cansada de UM CERTO RPG MEDIEVAL, decidi mudar minha mesa de quarta para o City of Mist. Os jogadores empolgaram bastante, já que está todo mundo exausto desses CERTOS RPGS MEDIEVAIS. Mas esse não é o ponto: claro que os jogadores empolgaram, a premissa é incrível! Imagina só, viver uma pessoa com uma lenda dentro de si, com poderes, mistérios e essas coisas de crescimento pessoal, podendo misturar as mitologias e trabalhar temas mais complexos e profundos e… nossa, uau! Como negar? Como não desejar sair da mesmice pra viver uma história investigativa em que, diferente dos RPGs de terror que a gente conhece, a personagem pode sim mergulhar no mistério, pode sim ir até o fundo da investigação sem correr o risco de morrer ou de enlouquecer e se perder simplesmente por adquirir conhecimento (sim, Lovecraft, isso foi um cutucão).

Mas esse causo não é sobre a empolgação dos jogadores ou as possibilidades incríveis do cenário. Também não é sobre as bases do PBTA, que, pra quem não conhece, a gente resolve em 10 minutos de conversa (ou em um dos muitos artigos e coisas que tanto a editora quanto nossos parceiros estão preocupados em lançar). Esse causo é sobre o processo de criação de personagem. E é sobre dois jogadores especiais, Juju e Andressa, que obviamente tiveram os nomes trocados para não poderem ser identificados. Mais do que sobre eles: é sobre a reação deles ao sistema.
Cheguei com a ideia, contrabandeei algumas informações privilegiadas, e começamos a pirar. E o Juju é incrível, porque ele me levanta e pira comigo. Logo estávamos pensando nas mil possibilidades de Mythos que poderíamos explorar, pensando em como construir uma personagem incrível. Ele optou por fazer alguma coisa com Exu, ou com forças motrizes de Exu, uma divindade da religião que ele segue e a quem muito admira. Juju pensou logo numa personagem potente, avassaladora, que carregasse seu Mythos com toda a pompa e filosofia.
Andressa, por sua vez, é uma jogadora que sempre me faz voltar pro chão. E não de um jeito ruim, não. Ela sempre subverte minhas expectativas e me faz confrontar a realidade de que, como mestre ou narradora ou sei lá o quê, eu não sei de tudo, não posso esperar tudo, não tenho o controle de tudo e nem sempre interpreto tudo certo. Tenham Andressas nas suas mesas, porque faz muito bem.

Andressa decidiu fazer o mito de Hércules. E eu confesso que, diante de tantas possibilidades incríveis de exploração filosófica, a princípio achei meio xoxo. Tanto mundo pra viver, sabe? Você pode fazer o Mythos do salto evolutivo, pode fazer a dúvida, pode fazer a própria ideia dos pactos, pode explorar a ideia de fogo purificador, de ritual, de sei lá. Pode trazer lendas brasileiras, como o boitatá ou a mula sem cabeça, pode explorar até nossas lendas urbanas, como o et bilu e o chupa cabra. Diante de todas essas possibilidades, o que é um semideus grego meio bundão?

Bem, a gente aqui não se prende nos julgamentos de um livro pela capa, e Andressa é uma das minhas jogadoras favoritas (essa mesa de quarta é toda de julgadores favoritos), então deixei meus preconceitos pra lá e segui em frente. E sugiro que você faça isso também porque, ao longo desse causo, você vai ver como a Andressa foi genial, e eu e o Juju simplesmente não tínhamos entendido o jogo.

É porque City of Mist não é um jogo sobre lendas, sobre Mythos. É um jogo sobre pessoas. Quem você é no seu Logos, na sua vida mundana, importa tanto ou mais que sua lenda, seu Mythos, seu mistério. Não é tão óbvio para alguém que, como eu, tá acostumada a pensar em relações entre mundano e mistério com referências como Deuses Americanos, Cidade Invisível e por aí vai. Até o próprio Lovecraft faz a gente cair um pouco nessa armadilha, trazendo o mitológico como uma coisa tão importante e inacessível, tão maior que nós. E City of Mist não tem essas referências como base.

Codificada no sistema está a necessidade de que a vida mundana da personagem tenha força suficiente para bater de frente com o Mythos. Então, se você, como eu e Juju, faz uma personagem mística e fantástica que abraça, vive e transmite a lenda dentro de si, que não faz nada além de carregar sua mensagem abertamente por aí, você não vai conseguir evoluir a ficha da personagem. Porque é contradizendo seu Mythos (ou seu Logos), que você evolui a personagem. Se não tem contradição, não tem evolução. Explico: cada personagem começa com 4 temas, que representam aspectos principais da sua vida. Deve haver pelo menos um tema de Mythos, que representa essa força especial e lendária dentro de você, e pelo menos um tema de Logos, que representa sua vida mundana. Esse tema de Logos (e isso é muito importante) não pode trabalhar o seu Mythos. Pode parecer uma informação meio óbvia, mas, durante a criação de personagem, é uma coisa bem difícil de atentar.
Os temas têm 3 pontos positivos e 1 fraqueza e evoluem juntando Atenção, o que só acontece se suas ações forem atrapalhadas pela fraqueza do tema (mesmo que não o envolvam diretamente). A cada x marcadores de atenção, você ganha uma melhoria de tema, que vai aumentando seus poderes. Até aí, tudo beleza, certo?
Só que a sua personagem também tem uma carta específica dela, com informações e questões que não dependem dos temas. Essa carta de personagem pode ser melhorada com momentos de evolução. E como juntá-los? Isso mesmo: perdendo temas. Quando você perde um tema, cada ponto de melhoria é traduzido em pontos de progressão. A cada x pontos de progressão, você ganha uma melhoria de tema.
E como perder um tema?, você me pergunta. Ora pois, muito simples: cada tema de Logos representa uma certeza na vida da personagem, como por exemplo “sou uma mercenária e não falho nos meus contratos”, assim como cada tema de Mythos tem um mistério, como “quem foi o responsável por me transformar num morto-vivo?”. Se essa

personagem hipotética se vê, por exemplo, numa situação em que foi contratada para matar um hacker, mas esse alvo oferece respostas, matá-lo seria negar a busca do Mythos por essa resposta. E não matá-lo seria burlar o contrato, o que vai contra a certeza do Logos. Claro que é uma situação hipotética que pode ser melhor trabalhada de muitas maneiras interpretativas, mas vocês entenderam a ideia. Cada vez que você vai contra um tema, você marca quebra (Logos) ou dissipação (Mythos). Quando marcar uma quantidade suficiente, você perde o tema, e cada melhoria se converse em pontos de progressão, ou seja: a evolução da personagem depende necessariamente dessa contradição entre Mythos e Logos. Se você fizer como eu e Juju, que queríamos uma personagem super incrível que abraçasse e envolvesse seu Mythos, essa contradição se perde, e a personagem fica impossibilitada de evoluir. Claro que dá pra trabalhar essa ideia e criar contradições, mas é importante entender que a personagem que vive completamente seu Mythos é uma personagem que os jogadores não conseguem controlar bem. Existe um estado de Avatar, que é quando você perde todos os seus Logos, e ele dura pouco, é tipo um super poderzão, e, quando acaba, você perde a personagem ou começa com ela do nada. O mesmo também acontece para uma personagem só Logos, que é considerada uma Dormente. Ela age por algum tempo, mas tem um poder tão intenso de negar tudo que é Mythos e mistério que de fato atrapalha as outras personagens (e os outros Portais que existem por aí) e não dura muito; tanto o domínio total do Logos quanto o do Mythos são “endgames”, são superpoderes que deixam a personagem mais em evidência que as outras durante seu breve período de duração e resultam numa mudança drástica (ou na perda) da personagem em questão.

Em 15 minutos explorando o jogo, Andressa foi capaz de compreender esse detalhe que eu, como tradutora, que li todo o sistema e no fim das contas já sabia disso, não tinha entendido ainda tão profundamente, não tinha traduzido esse conhecimento na criação de personagem, só tava empolgada com a ideia que eu tinha feito do jogo. (E também não dá pra dizer que ela tinha entendido o jogo inteiro e eu não tinha entendido nada. Calma lá, homens. Tem muitas questões e pormenores na ficha, e qualquer mestre de cerimônias precisa estar ligado e presente para ajudar os jogadores a criarem bons temas, que possam ser de fato úteis para empoderar as ações das personagens.)
A Hércules de Andressa (é uma mulher) só tem um tema de Mythos: os doze trabalhos (que traduzimos com ajuda da força sobrenatural da lenda). São três temas de Logos: O acidente, no qual ela foi responsável pela morte de toda a sua família (atrelando seu Logos ao Mythos de Hércules); o alcoolismo, que surgiu a partir desse trauma; e seu treinamento de boxeadora, a profissão que ela perdeu e está tentando recuperar. Em um só tema, seu Mythos, Hércules, traz o aspecto da força incomum e que ela não consegue controlar direito, mas também a narrativa de redenção: na lenda, Hércules precisava cumprir 12 trabalhos para se redimir por, num momento de loucura, ter matado toda a sua família.
A tendência é que, ao longo do jogo, a personagem de Andressa vá perdendo seus temas de Logos conforme explora seu Mythos. Vivendo essa contradição, ela vai pouco a pouco evoluindo a personagem até ter temas de Mythos mais poderosos e muitos momentos de evolução. Porque City of Mist é um jogo sobre personagens comuns com poderes lendários, uma contradição implícita já no mote do sistema, e algo que não podemos esquecer enquanto exploramos as maravilhas incríveis do cenário.



City é um jogo lindo. É um jogo que obriga você a lançar um olhar mais amoroso para a parte mais mundana da personagem, a parte que no geral empolga menos. Ninguém acha mais incrível trabalhar na prefeitura que ter a habilidade de voar, por exemplo. Mas a parte lendária, a parte que voa, que transcende a realidade, não é a parte que você joga. É a parte que você tenta atingir, tenta descobrir, tenta negar ou se entregar por inteiro.
A parte que você vai interpretar, as nuances de comportamento e os momentos emocionantes que vai viver são a vida mundana da sua personagem. É a parte comum, que a gente teima em achar sem graça, mas que é o que nos move a cada dia.
Como jogadores, eu espero que vocês consigam encontrar poder nessa contradição, que possam ver mais significado e importância na parte que é nossa, que é conhecida, que é comum. Como mestres de cerimônia, espero que vocês entendam a importância de permitir que seus jogadores vivam a história mundana que eles querem e precisam viver, com o toque de misticismo que cada um quiser levar. Que vocês possam conduzir os jogadores por essa trama de contradições e ajudar as personagens a descobrirem forças incríveis em sua identidade comum.

Porque City of Mist não é um jogo sobre lendas. É um jogo sobre pessoas.


O Financiamento Coletivo de City of Mist começa no dia 07/05. Confira gratuitamente o Guia Rápido AQUI
Confira também o resumo escrito por Nina Bichara AQUI