Por David Dornelles

Há pessoas que acreditam que esse mundo é justo e bom. Que tudo é pirulito e arco-íris. Para nós não é pirulito e arco-íris. Nós sabemos que são só lindas cores que escondem como o mundo realmente é. Preto e Branco.” Watchmen (2019)

A famosa frase “Quem vigia os vigilantes?” das Sátiras do poeta romano Juvenal foi usada em várias mídias e até deu título para episódio de Star Trek, mas ficou marcada na cultura pop com Watchmen, quadrinho de Alan Moore e Dave Gibbons do fim dos anos 80, ao confrontar o conceito de heróis na época. Na HQ, os vigilantes são pessoas comuns e sem grandes poderes que resolvem confrontar o crime usando fantasias chamativas. A obra é repleta de dilemas morais, conflitos e indivíduos falhos. Ainda que se enxerguem como figuras bondosas, nenhuma personagem é um perfeito exemplo de caráter.

Posteriormente, mais precisamente em 20 de outubro de 2019, a emissora norte-americana HBO estreia sua série derivada dos quadrinhos. A história se passa 30 anos após o fim dos eventos contados na HQ e a frase das Sátiras retorna logo no primeiro episódio. Como parte de um juramento do corpo policial de Tulsa, é recitado pelo chefe da polícia “Quis custodiet ipsos custodes?” seguido da resposta dos demais: “nos cutodimos” — que numa tradução livre seria “Quem vigia os vigilantes?” e “nós vigiamos”.

Na série da HBO, nos deparamos os membros da Sétima Kavalaria, uma organização de supremacistas brancos, usando a máscara de Rorschach enfrentando policiais mascarados — que receberam o direito de protegerem suas identidades após um ataque em massa do grupo contra a polícia — que ficou conhecido como A noite Branca. Esse embate fica cada vez mais complexo à medida que os episódios avançam e a conspiração que envolve a cidade a cidade vai se revelando. Tal como na HQ original, a narrativa mostra a índole das personagens como algo duvidoso. Com algumas manobras narrativas, você pode ser facilmente convencido a concordar com um dos lados e ignorar os problemas que ele apresenta.

QUAL A VERDADEIRA FACE DO VIGILANTE?

Quem sou eu? Se eu soubesse não estaria com uma máscara.” Watchmen (2019)

Quando falamos em heróis mascarados, a primeira “justificativa” que encontramos para eles se vestirem daquela forma é a “segurança própria”. O conceito de “identidade secreta” já nos é tão comum que nem sequer questionamos isso. Para mim, por exemplo, essa resposta sempre foi o suficiente até pouco tempo. Ainda este ano, eu estava num evento acadêmico sobre Quadrinhos na USP. Após apresentar um trabalho ao lado de uma grande amiga, nós e os demais participantes estávamos debatendo sobre diversos assuntos relacionados às HQs e, comentando sobre o Batman, concordamos que o morcegão é tão insano quanto os vilões que ele enfrenta.

Voltando a Watchmen, o próprio Alan Moore já declarou que um de seus objetivos na obra era representar como o Batman seria no nosso “mundo real”. E é em Rorschach que vemos com mais clareza essa representação. Um detetive com fortes valores de justiça, mas também um sociopata desequilibrado. Ao fim da trama, quando lhe removem a máscara ele grita desesperado “O meu rosto! Devolva o meu rosto!” e é sobre isso que quero falar. Qual a verdadeira face do vigilante? O rosto que veio impregnado em seu corpo ou a identidade que ele constrói? Dentro deste contexto a segunda opção me parece mais adequada. É o que ele acredita. Entretanto, quero levar esse debate um pouco além. Ao vestir seu rosto, o vigilante torna-se, de fato, sua projeção ideal de justiça?

Fazer o que achamos certo e fazer, de fato, o que é certo podem ser coisas bem diferentes. Veja bem, não estamos tratando de “super” heróis, mas de heróis humanizados, verossímeis, sujeitos a serem tão limitados e falhos quanto nós ainda que a ficção os favoreça em seus feitos. No quarto episódio da série da HBO, nos deparamos com uma frase bem forte vinda de Laurie Blake — A segunda Espectral, filha de Sally Juspeczyk, a primeira Espectral, com Edward Blake, o Comediante. 30 anos após vivenciar o plano de Ozymandias e bem mais madura ela diz “pessoas que usam máscaras são motivadas por traumas. São obcecadas por justiça por causa de uma injustiça que sofreram”. Em outro momento Laurie também conta uma piada envolvendo Coruja, Ozymandias e Dr. Manhattan. A conclusão de sua fala é que nenhum deles foi totalmente benéfico para o mundo e todos mereciam o inferno. Nenhuma das três noções de paz e bondade para com a humanidade realmente funcionou. Dentro deste contexto, entendemos que um vigilante tem sua percepção de mundo limitada pela obsessão de suprimir seu trauma e é incapaz de perceber as próprias falhas. Portanto, é improvável que eles alcancem em si a sua projeção ideal de justiça.

VIGILANTES EM JOGO

Algo essencial para mim quando vou usar referências nas minhas mesas é refletir o quanto ela dialogam com o cenário e as possibilidades de ressignificações que elas possuem. É importante tomar cuidado para que elas não pareçam deslocadas. Algumas coisas que vemos na mídia podem se encaixar perfeitamente naquele nosso jogo preferidos enquanto outras nem tanto. Quando a proposta é usar Watchmen em jogo, é interessante relembrar tudo o que já foi dito aqui e tentar usar a essência desta discussão na prática.

Dito isso, vamos tentar simplificar da seguinte forma: os vigilantes serão figuras aparentemente boas, mas que exercem um papel antagônico à sociedade e, independente de quaisquer motivações, podem apresentar riscos aos personagens dos jogadores. Assim, darei três exemplos de como usá-los em diferentes jogos.

Em Rastro de Cthulhu, uma seita de mascarados que busca inspiração num vigilante (que pode ou não já ter morrido) serviria como base para uma trama complexa e cheia de conspirações envolvendo Nyarlathotep — afinal, quem melhor que o Caos Rastejante e suas infinitas máscaras como ameaça nesse contexto? Ele seria o provável responsável por incitar não só o surgimento da seita como também do surto de tantos vigilantes mascarados pelo país.

O legal desse gancho é ele não parecer óbvio logo no começo do jogo. Os vigilantes inclusive podem oferecer algum tipo de auxílio aos investigadores em uma trama menor e só posteriormente se revelarem uma ameaça. O ideal é que a persuasão de que eles são importantes para a sociedade e estão tornando as coisas melhores seja sutil — use-os inicialmente como pano de fundo em alguma notícia nos jornais e vá estabelecendo um contato com calma. Holofotes demais para NPCs costumam entregar a trama para os jogadores e não queremos que isso aconteça, não é mesmo? Deixe que descubram a verdade quando pelo menos um deles tiver mostrado algum tipo de apoio à causa do culto.

Com Savage Worlds, graças à versatilidade do sistema, há muitas possibilidades de jogo. Um gancho que pode se adaptar com maior facilidade aos possíveis cenários é uma lei de registro de vigilantes como a “Lei Keene” de Watchmen ou a “A Lei de Registro de Super-Humanos” que incita a Guerra Civil da Marvel. O interessante desse gancho é que ele pode afetar os jogadores mesmo que seus personagens não se encaixem no arquétipo de herói mascarado. De um jeito ou de outro, o conflito chegará até eles.

Seja num cenário contemporâneo, medieval ou futurista, não é difícil encaixar figuras mascaradas na história. O ponto aqui é trabalhar como isso torna-se um tabu. Seja por uma catástrofe causada pelos vigilantes — resultado, muito provavelmente, de uma tentativa de “combater o mal” que deu errado — ou, quem sabe, uma personagem mascarada famosa e bem vista comete um grande crime — que pode ou não ter sido realmente culpa dela. A partir desse evento impactante quebra-se o status quo. Se os jogadores também forem vigilantes terão que se esconder, se não forem serão colocados contra as figuras que antes respeitavam.

Para jogos dramáticos como Terra Devastada, é necessário pesar mais nos dilemas morais. Um grupo de mascarados agindo como justiceiros e defendendo tolerância zero pode ser aceito inicialmente com certa facilidade pelos sobreviventes. Os vigilantes punem indivíduos violentos, ladrões e quaisquer ameaças para a comunidade, mas a partir de algum momento se mostram tão brutais quanto as pessoas que caçam. É a partir desse ponto que as coisas podem ficar interessantes, pois qualquer um que desafiar a autoridade dos vigilantes seria facilmente capturado como uma “ameaça”.

Essa entidade para-militar que supre uma necessidade inicial de segurança tornar-se uma ameaça pode ser um plot twist marcante para seus jogadores. Apesar de ser um jogo onde monstros, nesse caso zumbis, estão presentes o tempo todo, Terra Devastada propicia debates sobre humanidade, empatia e ética. Questões como “A que custo a sobrevivência no fim do mundo deve ser conquistada?” e “O fim justifica os meios?” vem à tona com facilidade nesse contexto e as reflexões vivenciadas no jogo podem tornar essa experiência ainda mais memorável.

ALGUMAS ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Primeiramente eu espero que você não tenha chegado ao fim do texto com raiva de mim. Se você tinha o Rorschach como modelo, sinto muito. Nem o criador dele gostava dele. Eu não tenho pretensão nenhuma de impor algo pra ninguém e também não sou um ser humano exemplar, mas espero que algumas reflexões desse texto tenham valido à pena. Além disso, gostaria de ressaltar que abordar temas pesados em jogo é válido, mas deve ser feito com bom senso. Se você pretende retratar preconceito, estupro e violência assim como em Watchmen, lembre que a experiência de uma mídia e de uma partida de RPG são completamente diferentes. Não há necessidade de nenhuma das pessoas que jogam com você vivenciarem uma cena desconfortável e traumatizante. Tenha um pouco de empatia e pondere como trabalhar tais assuntos de forma adequada. É importante que o RPG seja um ambiente seguro e divertido para todo mundo. Até a próxima.