A Não-Violência nos Jogos
Por David Dornelles
Há tempos que vejo circular uma tira do artista Caio Oliveira intitulada “Caverna do Dragão com RPGistas de verdade”. Nela, o Mestre dos Magos mal tem a chance de se apresentar para o grupo de aventureiros sedentos por sangue e peças de ouro. Na verdade, não é de hoje que vemos este tipo de humor que, por sinal, não entendo como negativo, mas sim como uma provocação à reflexão. Será que estamos condicionados à um ciclo infinito que se resume em matar criaturas e acumular riquezas? É exatamente com essa provocação que desejo iniciar este texto.
Violência e Desafio
Em A Arte do Game Design, Jesse Schell (2011) aponta que “o desafio é a parte essencial de praticamente qualquer jogo” e “poderia até dizer que um jogo é um jogo é definido por seus objetivos e desafios”. Em sua maioria, os jogos de RPG consistem em aventuras de personagens com alguma capacidade de combate encarando aventuras e enfrentando inimigos em batalhas. Para além do objeto da personagem, o objetivo do jogador geralmente estará relacionado a derrotar inimigos para fortalecer a personagem de modo que ela tenha capacidade de vencer oponentes ainda mais poderosos.
É difícil negar que, em sua origem, o sistema de progressão dos personagens de RPG se baseava no ciclo referido. Tanto nos jogos de mesa quanto nos eletrônicos, o grinding (isto é, o hábito de matar criaturas pelo mapa para acúmulo de pontos de experiência) era a base do jogo. Até hoje temos jogos que se baseiam unicamente no combate para obtenção de XP, mas já não é mais a única forma de progressão. Cada vez mais, principalmente em jogos indie, observamos alternativas e outros meios de progressão. Contudo, ainda é difícil dissociar o enfrentamento direto de inimigos, ou seja, situações de combate, como um dos principais desafios nos jogos.
Roleplay e Escolha
Schell fala em seu livro que “Um bom jogo dá ao jogador escolhas significativas. Não apenas escolhas, mas escolhas que terão impacto real sobre o que acontece em seguida, e como o jogo acaba”. É engraçado pensarmos que, em um jogo onde deveríamos ter grande poder de escolha e influência sobre nossas personagens, existe uma possibilidade de o mestre não recompensar as escolhas do jogador de forma significativa. Pior que isso, o acredito que dilema do “Ogro Quântico” pode ser mais comum do que imaginamos.
O termo Quantum Ogre, concebido pelo blog gringo Hack & Slash, tinha como exemplo um mestre planejar um combate contra um ogro e, independente de que direção o grupo seguisse, forçar a narrativa para que tal encontro acontecesse. Isso quer dizer que o ogro não estaria fixo em uma floresta ou caverna, mas de certa forma simultaneamente em ambos os lugares desprezando o poder de escolha dos jogadores e a chance de desviarem de uma rota perigosa. Em suma, o Ogro Quântico é a antítese do princípio de escolhas significativas e, por isso, deveríamos evitá-lo.
Não-violência como alternativa
É importante ressaltar que não estou propondo que as personagens em nossas mesas de jogo sejam pacifistas. Não tenho interesse nem o direito de estabelecer regras. Ao contrário disso, escrevo para propor uma subversão à monotonia repetitiva de chutar portas, matar monstros e coletar tesouros. Seja por segurança das personagens, por resultados mais proveitosos ou qualquer outro motivo, a não-violência pode ser uma alternativa interessante para mudar o ritmo da narrativa e a experiência em jogo.
A exemplo das mídias eletrônicas pode-se observar que em jogos como Dark Souls muitas vezes se evita combates por entender que a personagem vive em um mundo injusto — assim como na vida real — onde desafios nem sempre — ou quase nunca —serão balanceados. Já em The Witcher III: Wild Hunt mais de uma vez há momentos em que pode-se escolher — seja negociando, enganando para matá-lo de forma segura ou usando o Sinal Aard — evitar um combate. No segundo exemplo ainda é possível receber XP por isso. Portanto, é interessante pensar que evitar o combate não é sinônimo de covarde. Muito pelo contrário, pode significar uma mente afiada para estratégias.
Crime e Castigo
Existem ocasiões em nossas mesas de jogo em que lidamos com personagens exageradamente violentas — quase como na tirinha citada no começo do texto. O Canal Deerstalker Pictures possui um vídeo muito bacana chamado Murderhobo que apresenta de forma cômica como as coisas podem complicar para jogadores que usarem violência desenfreada — principalmente se contra inocentes.
Schell aponta em seu livro as lentes da Recompensa e da Punição — que entendo não como opostas, mas complementares — que apontam nos jogos um caráter geralmente behaviorista. Em outras palavras, Recompensas reforçam certos comportamentos — dentre ousadia para encarar desafios maiores ou seguir recomendações apontadas — enquanto as Punições desencorajaram um comportamento não esperado. Um exemplo nas mídias eletrônicas é Undertale em que os combates são a estratégia fácil, mas altamente punitiva e a não-violência representa um desafio muito maior com retorno narrativo emocionante na conclusão do jogo.
Círculos Viciosos e Triângulos Amorosos
Neste momento, acredito que você deve estar pensando em adotar a não violência em suas mesas de jogo com paixão. O que é ótimo. Mesmo. Não obstante, é necessário tomar cuidado! Paz ou violência, nada em excesso é saudável. Quando uma única postura em jogo se mostra melhor a ponto de ser repetida, chamamos isso de estratégia dominante. Schell nos exorta “Depois de uma estratégia dominante ser o jogo não é mais interessante, porque o enigma do jogo foi resolvido — não há mais escolhas a se fazer”. Por isso, cabe à figura do Mestre de Jogo construir uma relação de triangularidade a fim de evitar que o jogo torne-se entediante.
A triangularidade consiste numa lógica de baixo risco/baixa recompensa versus alto risco/alta recompensa onde a figura do jogador está em constante questionamento de qual rumo escolher. Incentivo, então, que a violência e a não-violência em jogo estejam em constante mudança no que se refere a risco e recompensa para que seus resultados não se tornem previsíveis.
Ora, é possível que em uma sessão de jogo o grupo resolva tudo com a mais bela diplomacia, mas o que garante que ela funcione sempre? Ou, ainda, não é porque derrotar goblins se mostrou a fácil a princípio que os mesmos devem ser tratados como um um desafio banal. Construa inimigos traiçoeiros que trairão o grupo e não manterão com a palavra, elabore uma emboscada desafiadora com inimigos considerados inofensivos para o nível dos jogadores e você estará contribuindo para experiências apaixonantes.
Ao vencedor, as batatas
Quando falamos de game design é sempre preciso ter em mente que as experiências vivenciadas e informações coletadas com determinado grupo não necessariamente se mostram eficazes ao serem aplicadas com outro. A verdade é que não existem fórmulas mágicas para a diversão do outro e muito menos para o “sucesso” — seja lá o que você entenda como sucesso. Ainda assim, nos propomos a experimentar, testar e analisar resultados.
O texto que agora encontra seu fim está longe de ser um guia perfeito para equilibrar a violência a ausência desta em nossos jogos, mas a mínima possibilidade de instigar a reflexão durante após sua leitura ecoa como um grito de guerra que inspira o presente autor a continuar suas investigações e provocações. Espero não apenas que você reflita como também compartilhe nos comentários o que você pensa sobre o tema.
Si vis pacem, para bellum.