Por Pedro Feio

Introdução

Sobre a figura do Narrador repousam grandes responsabilidades na condução de uma sessão de jogo. Talvez a maior delas seja o desenvolvimento de uma narrativa capaz de envolver os jogadores, deixando-os imersos tanto na história jogada, quanto nos personagens por eles interpretados. Como fazê-lo? Não há receita capaz de garantir esse resultado.

A partir das próprias experiências de jogo, leituras, filmes e outras tantas fontes de referência, cada um de nós constrói o próprio método e estética narrativa. Narradores experientes conseguem ser mais plásticos e criar diferentes estéticas de acordo com as situações e atmosfera de jogo desejadas.

Como exemplo vamos pegar o Terra Devastada Edição Apocalipse de John Bogéa, lançado pela RetroPunk. Nas palavras do próprio autor: “Terra devastada não é, necessariamente, um jogo sobre infectados. Acima de tudo é um jogo sobre pessoas, limites e a fragilidade da condição humana quando nos deparamos com algo que não entendemos e que não podemos conter ou remediar”. Nesse tipo de narrativa é preciso evocar as imagens apocalípticas de cidades retalhadas pela guerra contra a pandemia zumbi e repleta de mortos vacilantes, mas para além disso temos de mergulhar os jogadores em uma atmosfera de confusão, medo, dúvida, terror, desejos e etc.

Essa imersão pode ser conduzida de muitas formas e é importante que cada grupo de jogo encontre a forma que considerar mais divertida para tanto. Nesse texto vou falar sobre a possibilidade de lançar mão de uma estratégia de narrativa não linear como forma de suscitar esses elementos de jogo, pois vivi recentemente, como jogador e narrador, utilizações muito interessantes dessa estratégia narrativa.

Na narrativa não linear, a história transita pelo tempo e o espaço sem seguir uma cronologia clara entre os acontecimentos. As cenas de jogo que compõem a história podem ser apresentadas de diversas formas. Podem, por exemplo, acontecer em sua ordem invertida, na qual os jogadores começam pelo fim e vão vivendo cada cena que os levou até ali em direção ao início da história.

Mas a minha estratégia favorita é outra: apresentar as cenas de jogo paralelamente e de forma entrecortada. Assim, o significado, bem como as interpretações possíveis dos jogadores, para cada uma das cenas já vivenciadas vai mudando, expandindo-se, ganhando novas possibilidades. Esse tipo de narrativa pode ser usado em absolutamente qualquer sessão de jogo, onde você acredite ser adequado, desde que tenha alguns cuidados simples em mente.

Uma experiência não linear

Bruno S. Almeida estava narrando para mim e mais alguns conhecidos a crônica Danse de La Mort de Vampiro: O Réquiem. Basicamente, nossos personagens despertaram numa noite de carnaval sem a remota ideia do que lhes havia levado até ali e sem sequer conhecerem uns aos outros. O choque inicial estava dado, sabíamos quem éramos, mas não porque estávamos ali e nem entendíamos os fatos pelos quais nossos corpos, agora vampíricos, eram atravessados.

A confusão não parou por aí. Tudo seguiu o esperado em uma narrativa de Vampiro. Em pouco tempo estávamos atolados em problemas e de frente para o príncipe (autoridade vampírica de determinada região), cujo comportamento esperado seria liquidar com essas crias vampíricas (neófitos) não autorizadas. Mas ganhamos a oportunidade de sermos úteis identificando os responsáveis por essa severa infração às leis dos vampiros e de, quiçá, mantermos nossa “vida após a morte” assegurada.

O jogo seguiu por aí: muita investigação, cujo resultado era estar cada vez mais envolvido pelos segredos e tramas bizarras do oculto mundo vampírico. Mas no fundo minha personagem e, acredito que de outros jogadores, só queria fugir daquela loucura sem sentido na qual havia acordado. Mesmo vivendo aquilo claramente, toda essa loucura só poderia ser um pesadelo do qual acordaria tão logo conseguisse fugir. Para a surpresa de todos, no terceiro encontro do grupo, o narrador, seguindo a proposta dos livros da crônica Danse de La Mort, disse: A sessão de hoje se passa duas noites antes da última sessão. Ou seja, jogaríamos as últimas e preciosas horas de vida de nossos personagens antes do início da aventura.

Vou me limitar a dizer que foi fantástico. As linhas da história se entrelaçavam conforme narrador ia construindo-as e reconectando com os personagens de maneira fluída e dinâmica sem criar uma experiência de turnos separados muito marcada. Era tudo junto e separado ao mesmo tempo. Eu, pude saciar minha curiosidade sobre uma miríade de detalhes que conduziram minha personagem até o início de jogo e definir em narrativa conjunta com o mestre outros tantos detalhes constituintes dos personagens que não haviam sido trabalhados até então. Ao final da sessão, estávamos de volta ao momento 0 (Zero), onde fizemos rolamentos (de dados) para definir a quantidade de informação recuperada pela memória de nossos personagens para próxima partida.

Se você acha que todas as perguntas foram respondidas, engana-se. Arranhamos a superfície de uma trama mais profunda, desenvolvemos dramaticamente os personagens e ganhamos um caminhão de novos questionamentos sobre tudo. Genial, não?

Pois é. Essa ideia é bem antiga. Machado de Assis usou esse tipo de ruptura em Memórias Póstumas de Brás Cubas ao iniciar o livro pelo óbito do personagem responsável pela narrativa da história. No filme Amnesia, dirigido por Christopher Nolan, temos um homem que sofre de um tipo de amnésia que o impede de adquirir novas memórias envidando esforços para encontrar o responsável pela morte de sua mulher. O filme, grosso modo, tem duas linhas temporais: uma corre de trás para frente enquanto a outra é cronológica. O movimento paralelo de ambas produz um encontro inevitável entre o passado “confuso” e o presente do personagem.

Narrativas não lineares e selvagens

Escrever este artigo me colocou para pensar seriamente sobre esse estilo de narrativa e fiquei ainda mais empolgado com as ideias que foram surgindo. Então resolvi pô-las em prática em uma de minhas mesas de campanha de Savage Worlds.

Meus companheiros carta-selvagens (como se denominam os protagonistas – personagens jogadores ou não – no sistema de Savage Worlds estão em Detroit (Michigan, EUA), década de 50, mas não é qualquer Detroit, é uma Detroit apresentada sobre o prisma da literatura Noir de Dashiel Hammet e, principalmente, Raymond Chandler. Ou seja, precisava mergulhar os jogadores em um jogo de tramas complicadas, num país se recuperando de um momento difícil. Estamos em pós-recessão, o país cheio de incertezas e uma legião de desempregados vagam pelas ruas buscando meios para sobreviver.

Para cumprir o objetivo de manter a atmosfera e colocar à prova os personagens, homens da cidade, habituados a tensões e a violência, adicionei a isso uma boa dose de sobrenatural com auxílio do material presente no Compêndio de Horror de Savage Worlds. Muita ação, correria, confusão e muito, mas muito suspense com doses de horror nas quantidades exatas para manter o clima mistério e dúvida.

Para iniciar as sessões de jogo dessa campanha, resolvi testar a narrativa não linear. Carreguei nas descrições para criar o mesmo ambiente dos livros do Chandler e despertei os personagens em um buraco frio, úmido e escuro. Confusão completa. Sem memórias. Todos juntos sem se (re)conhecerem. Dei uns poucos minutos de interação e, em seguida, cortei a possibilidade de interação dos jogadores com policiais entrando no ambiente e os levando para a delegacia.

Uma vez na delegacia, foram todos jogados em salas de interrogatório. A partir daí construí os interrogatórios individualmente com cada personagem, sem deixar claro para jogadores a sequência real que eles teriam acontecido. Passei de um jogador para outro de maneira fluída, sem uma linha de turnos e duração definidas, tudo de acordo com a construção da narrativa e o que ia se desenrolando ali. Conforme as conversas se arrastavam e a interação com cenário ia gerando situações particulares, eu ia adicionando fragmentos de memórias individuais e coletivas dos personagens.

Aos poucos esses fragmentos dos dias anteriores foram se montando de maneira desorganizada e bem dispersa dentro das narrativas. Fazendo com o que os personagens fossem lembrando uns dos outros, de seu primeiro encontro e dos motivos que levaram cada um a estar no mesmo lugar e hora no início da aventura.

A confusão foi generalizada no início do jogo. E a desconfiança e tensão flutuavam de acordo com a ambiguidade que cada situação de jogo ia tomando diante da falta do conhecimento de situações prévias. Foi uma experiência incrível para mim como narrador. Me senti realmente desafiado e em alguns momentos tinha que me policiar e tomar notas de detalhes que ocorriam para não deixar o trem descarrilhar.

Pondo a mão na massa: Terra devastada não linear

Não é uma estratégia nova, mas geralmente é utilizada para criar impactos específicos. Confusão. Desconforto. Curiosidade. Essas sensações são ingredientes chave para despertar o clima especulativo e conspiratório que pode dar sentido à vida pós pandemia dos nossos sobreviventes em Terra Devastada. No livro, Bogéa dedica algumas páginas ensinando, dentro do contexto do jogo e de forma didática, uma estrutura de narrativa linear com início, meio e fim em sequência. Essa narrativa funciona muito bem no jogo, basta experimentar a aventura pronta do livro “Terror em Anhanguera”. Use essa estrutura, acostume-se com os elementos que a compõem e quando estiver seguro experimente organizar de forma não linear uma de suas partidas.

Como fazer isso? Bom, você vai ter que encontrar seu próprio método aqui e eu já sugeri um filme e um livro que usam essas estratégias. Na internet você encontrará dezenas de outras sugestões. Mas não vou te deixar desamparado. Vá para a História Rápida “Terror em Anhanguera” do Terra Devastada Edição Apocalipse.

Sua narrativa pode começar mergulhando os jogadores no horror da invasão de zumbis ao refúgio, logo após a abertura dos portões. Eles não conseguem lembrar precisamente de nada que aconteceu nas últimas horas. Assistem seu refúgio familiar transformado num banquete de zumbis, enquanto os rostos conhecidos se desfiguram em dor e sangue. A fuga é inevitável. Encontrar outro refúgio será uma batalha. Explore essas situações, serão ótimas para imergir os jogadores no clima de um mundo devastado por zumbis.

Uma vez em segurança, talvez a calmaria momentânea, ou uma refeição decente, ou uma boa noite de sono, ou uma simples conversa despretensiosa faça emergir algumas lembranças. Pronto. Narre “Terror em Anhanguera” como se estivesse começando normalmente, aprofunde os personagens no primeiro ato e no desenvolvimento do segundo. No terceiro ato nossos personagens falharam em impor-se fisicamente contra a equipe de segurança, tornando-se cobaias do experimento. Em determinado momento, um deles seria infectado, mas conseguiu dominar Lionel e soltar os amigos. Com sua fuga, Olívio determinou a abertura dos portões. O resto da história eles já viveram.

Converse com os jogadores aqui. O que será interessante lembrar, o que não? Tente avaliar em função dos seus planos para a próxima aventura. Lembre-se que os jogadores precisam “lembrar” o suficiente para se manterem curiosos. Justamente essa curiosidade é que vai impulsioná-los adiante. Insira outros elementos. Lionel pode, por exemplo, ter se referido ao nome de algum outro grupo que estaria ansioso por resultados. Que grupo é esse? Aonde estão? Que tipo de gente são? O que tramam? Ou a própria dificuldade de recobrar as memórias poderiam levar nossos personagens a infestada Anhanguera em busca de uma suposta cura ou soro, cuja existência ninguém teria certeza.

Uma história rápida foi expandida aqui para mais de uma história. Essa fórmula funciona particularmente bem com a versão Selvagem do Terra Devastada escrita por Fernando Del Angeles para o Sistema Savage Worlds, pois os jogadores são introduzidos no cenário em um pico de horror e muita selvageria.

Princípio da Parcimônia

Se você chegou até aqui, deve estar genuinamente interessado em dar prosseguimento a, pelo menos, uma sessão de jogo usando a narrativa não linear como uma ferramenta. Então está na hora de deixar claro os limites desse tipo de estratégia em suas sessões de jogo.

É preciso sempre tomar cuidado com a dose e frequência das estratégias de jogo que usa em suas narrativas. Um alquimista e médico suíço, conhecido sob o pseudônimo de Paracelsus, já prevenia: Dosis sola facit venenum (“Só a dose faz o veneno”). Ou seja, a diferença entre remédio e veneno está na dose que se consome. Acredite ou não, o mesmo serve para esse tipo de estratégia.

Como as narrativas não lineares são propositadamente desconexas para irem alterando as possíveis interpretações de cada cena conforme a história acontece, elas funcionam bem dentro de uma mesma sessão de jogo, ou até em sessões que aconteçam em dias seguidos. O tempo é inimigo da memória, ele vai começar a fazer com que os jogadores percam os detalhes e o efeito da ambiguidade se transformará numa confusão indesejada e insolúvel.

Ainda que as narrativas não lineares fechem arcos de história a cada seção, fazer uma campanha usando esse tipo de narrativa em todas as aventuras pode acabar tornando as informações importantes para o desenvolvimento do enredo da campanha demasiadamente desconexas.

Por fim, uma das questões que pode gerar incomodo é que algumas vezes a narrativa não linear nos demanda fazer certas imposições para garantir a estrutura lógica do enredo ao final do jogo. Você deve ter notado que na adaptação que deixei como exemplo da aventura de Terra Devastada tivemos de decidir previamente o desfecho do terceiro ato para dar coesão a história como um todo. Esse detalhe pode não incomodar muitos jogadores/narradores, no entanto, eu gosto de narrativas abertas sem muitas premissas.

Não é um exercício tão difícil, certo? Tente e me conte como foi. Estou ansioso por relatos.

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