Por Mateus Herpich

Atenção: Esse texto contém spoilers leves dos primeiros episódios da série Marianne. É recomendado assisti-los antes de continuar a leitura.

Escreva, porque o mal exige. Escreva, ou será pior. Escreva.

Hoje vamos falar sobre Marianne, uma série francesa de terror de apenas oito episódios com um enredo cativante e uma vilã totalmente aterrorizante. A série traz um confronto clássico: a criadora contra a criação, a autora contra sua própria obra. Emma, uma escritora cujos livros colocam a protagonista contra o espírito da bruxa Marianne, retorna à sua cidade natal para encarar os possuídos de sua antagonista. Marianne é cruel, violenta e atormenta suas vítimas através do medo e nojo. Ela se fortalece através da escrita de Emma, transformando em realidade os horrores contidos nas páginas de seus livros.

Mas o que Marianne tem para acrescentar ao seu RPG de horror e, mais do que isso, como incorporar partes suas em uma aventura de Rastro de Cthulhu? Marianne é, na verdade, uma história de terror sobrenatural, não cósmico e niilista como as obras lovecraftianas. Contudo, em se tratando da fragilidade da mente humana, há pouca diferença entre ser possuído por um espírito antigo e ter a mente vasculhada por um toque da psique dos grandes anciões. Em ambas as situações, uma camisa de força e um quarto acolchoado são os resultados prováveis.

Ambientação

Marianne se passa em Elden, uma vila costeira francesa de poucos habitantes, onde todos se conhecem e há apenas um policial. Elden é similar às localidades de muitas obras de Lovecraft, como O Horror de Dunwich, com um passado encoberto por segredos e onde não há autoridades às quais recorrer. Elden também ressoa com as cidades assoladas por Abissais e Grandes Antigos como Dagon ou Cthulhu, e o espírito da bruxa Marianne pode facilmente ser convertido na mente fragmentada de uma cultista destas entidades, com as cenas de sacrifícios presentes na série sendo oferendas a estas divindades.

O nojo como ferramenta do horror

A série frequentemente mostra não só as agressões da bruxa e ferimentos autoinfligidos pelos possuídos mas também objetos e situações provocadores de nojo: bolsas feitas de pele humana, decomposição, personagens vomitando ou se urinando. O nojo é uma emoção humana universal, certamente eficaz em provocar aversão. Quando combinada com o medo, é mais fácil chocar os jogadores com uma descrição gráfica impactante, e caso seu objetivo não seja o gore, o nojo provoca lembranças de contaminações e doenças, alterando a maneira como interagimos. Por exemplo, uma personagem que precisasse agarrar um ídolo profano poderia pensar duas vezes caso estivesse coberto de moscas e carne em decomposição. Da mesma forma, confrontar uma vilã como Marianne fica mais difícil quando o primeiro sinal de sua presença é o fedor de seus hábitos pouco higiênicos.

Em termos mecânicos, presenciar uma situação extremamente nojenta pode causar a mesma perda de estabilidade que uma situação violenta: 1 ponto por encontrar um objeto confeccionado de pele humana, 2 caso ainda esteja encharcado de sangue; 1 ponto por presenciar uma pessoa se urinando ou vomitando sem parecer se importar, 2 por, digamos, interações ainda mais grotescas com substâncias corporais.

Eu preciso lembrar que pessoas diferentes possuem sensibilidade diferente a esse tópico, portanto é sempre importante conversar com seu grupo antes que essas situações surjam em jogo e perguntar se está tudo bem usar descrições mais gráficas ou violência mais pesada.

Possessão

Um dos pilares do terror em Marianne é a possessão. A primeira personagem dominada, a senhora Daugeron, é o ponto alto da série, uma idosa cruel de expressões perturbadoras. Logo, porém, outros possuídos aparecem. A possessão é tão usada em histórias de terror por ser bastante eficaz em evocá-lo: poucas coisas são mais assustadoras do que perder o seu livre-arbítrio e ter seu corpo usado para cometer atrocidades. Contudo, a possessão de um Investigador pode ser frustrante, assim como outras situações em que o jogador é impedido de controlar sua personagem.

Uma solução é usar outros personagens para evocar o mesmo tipo de medo. Amigos, familiares e outros contatos dos Investigadores podem ser possuídos e assim criar um dilema para ser resolvido em jogo: o Investigador deve atirar em seu melhor amigo possuído? E se ele estiver ferindo outras pessoas? E se ele puder ser trazido de volta?

A possessão é ainda mais grave se considerarmos os custos mecânicos: ver uma pessoa ser possuída pode custar 3 pontos de Estabilidade, ter um ente querido — uma de suas Fontes de Estabilidade –– dominado pode custar 4 ou 5. Já o custo de Investigador ser possuído varia, podendo ser de 4 ou ainda mais caso se esteja consciente durante a possessão e presencie atos horrendos. Considerando um estilo de jogo Purista, o espírito de Marianne não causaria perda de Sanidade por não pertencer ao panteão do Mythos de Cthulhu, mas em um jogo Pulp essa perda pode acontecer.

A arte do terror

Outro tropo da ficção presente em Marianne é a protagonista criadora de histórias. De Misery até um capítulo particularmente shakespeariano de Sandman, esse tipo de protagonista é confrontado pelas consequências de criar suas obras. Em Velvet Buzzsaw, pinturas macabras ganham vida e aniquilam quem as aprecia. Em Marianne, os livros de Emma, inspirados no que ela pensa serem sonhos de sua adolescência, possuem um tenebroso fundo de verdade.

O livro de Rastro de Cthulhu traz Autor e Artista como Ocupações para os Investigadores, tornando fácil uma conexão com a trama da série. A aventura pode iniciar com um mistério aparentemente desconexo e que pouco a pouco aponta para a personagem Autora/Artista e sua obra. A personagem pode ou não ser culpada pelo mal causado por sua obra, tendo realizado algum tipo de pacto para obter sucesso, enveredado sem querer por conhecimentos que meros mortais não deveriam ter acesso ou ainda tê-la composto por influência direta de uma entidade além da nossa realidade, como em A Música de Erich Zann.

A Grande Revelação

Marianne termina com um evento que, para evitar spoilers, vou descrever apenas como uma anagnórise, uma grande e horrível revelação. Em muitas histórias de horror cósmico o mal perdura a despeito dos esforços e sacrifícios das personagens. De maneira similar, Emma descobre que a raiz de sua provação é uma entidade poderosa e que seu contato certamente terá consequências duradouras — um final adequado para uma história de horror e que deixa um gancho para a continuação, seja de uma série ou de uma aventura de RPG.

Em suma, Marianne é um compilado de diversos conceitos já abordados em outras histórias de terror, como espíritos vingativos, possessões demoníacas, protagonistas com um passado manchado e o isolamento e urgência que impulsionam a narrativa adiante. Todos esses elementos podem ser explorados dentro do contexto sobrenatural ou facilmente adaptados para o terror cósmico de Rastro de Cthulhu, em que a força psíquica de entidades mais antigas do que o tempo pode dominar as mentes humanas sem que estas nem mesmo percebam e onde contadores de história revelam e alimentam segredos que deveriam permanecer enterrados.