Por Fábio Medeiros

Utilizar elementos conhecidos do seu bairro, cidade ou região podem tornar a partida de RPG bem mais interessante para os jogadores, que ao interagir num cenário desconcertantemente familiar, são mais capazes de sentir que o fim do mundo é palpável, que está bem próximo. A proposta de tornar o comum e conhecido uma parte da narrativa é composta por vários elementos que enriquecem a trama, auxiliam na visualização e imersão dos jogadores e servem de ponto de referência e algumas vezes de refúgio para as personagens ao se depararem com o caos gerado pela destruição em Terra Devastada.

Espelho do Mundo Real

Não se engane ao achar que o “refúgio” será um ponto seguro, impedindo que o medo e o clima de terror apareçam. Trazer a familiaridade para a história após o fim do mundo é uma ferramenta que potencializa o terror. Quanto mais próximos estamos do que foi subvertido pelo fim do mundo, mais facilmente nos conectamos com as perdas e sofrimentos impostos pela narrativa. Todo mundo já viu a Estátua da Liberdade despedaçada em algum filme, porém a maioria ainda não teve a oportunidade de vivenciar uma cena em que a igreja e praça da sua cidade foram devastadas.

Caso o narrador opte por utilizar a regra opcional de “intervenções narrativas”, os jogadores poderão utilizar o cenário que eles conhecem previamente, inserindo informações com mais facilidade. Desta forma, há uma possibilidade maior da responsabilidade pela construção da narrativa passar a ser compartilhada entre narrador e jogadores. A tarefa do narrador de construir roteiros para a história também é facilitada por utilizar elementos conhecidos e próximos.

Uma ida a biblioteca pública do município pode render muitas informações extras como mapas, plantas baixas ou mesmo notícias e pequenas biografias que podem auxiliar a criar um local, evento ou personagem antagonista. Uma grande vantagem desta abordagem para enriquecer as sessões de Terra Devastada é que muita coisa a sua volta pode ser insumo para a construção da história. Programas de televisão locais, passeios pela cidade, leitura de revistas e jornais, ou mesmo conversas com pessoas da região podem fornecer sugestões valiosas.

Para ajudar a entrada dos elementos da cidade no jogo, eles foram organizados em cinco diferentes categorias independentes que podem interagir entre si: Pessoas, Eventos, Construções, Organizações e Lendas. Cada uma delas tem pontos específicos e relevantes na hora de criar o cenário para o jogo que vão ser apontados nos tópicos a seguir.

Pessoas Famosas, Políticos

Pessoas com expressividade e influência na cidade podem inspirar a criação de uma personagem interessante no jogo. Um político pode controlar infraestrutura, ser um líder local e determinar os caminhos do grupo que ainda resiste e sobrevive. Um criminoso pode ter sido preso pouco antes do fim do mundo e se tornou responsável pela sobrevivência de um grupo dentro do presídio. Uma celebridade como um cantor, ator ou até mesmo um participante de reality show pode ter seguidores que consideram sua opinião e posicionamento ao tomar suas próprias decisões ou ter algum papel na vinda de recursos e ajuda de outra região.

Mesmo pessoas não muito poderosas, mas conhecidas locais podem ter um papel na história. Preste atenção nos maneirismos do repórter do telejornal para reproduzi-los na personagem não-jogador jornalista, leia notícias sobre os políticos e celebridades. Na minha cidade tinha uma figura bem conhecida que transitava pela cidade com um megafone, um par de chifres e roupas espalhafatosas, fazendo propaganda do comércio local. Imagina a reação dos jogadores quando perceberem que uma das vítimas do vírus é exatamente essa pessoa, quem eles costumavam ver diariamente nas suas caminhadas pelo centro da cidade! Nesse caso não há uma preocupação com o anacronismo, os elementos retirados da história dos jogadores são trazidos para a atualidade das personagens. A proposta é ser mais visceral, causando sensações desconcertantes.

É possível também criar uma linha do tempo com os acontecimentos mais relevantes da cidade, imaginando de que forma estes acontecimentos se desencadearam em meio ao caos e destruição do fim do mundo. Assim os jogadores irão ter contato com partes deste cenário, numa campanha maior eles poderão até ser capazes de aos poucos ir entendendo boa parte do que aconteceu.

Eventos, Festas Típicas

As festas regionais são muito populares no Brasil e exercem bastante influência nos municípios, modificando sua dinâmica de maneira significativa. Aproveite o histórico da sua cidade com algum evento ou festividade para que apareçam no seu jogo. As estruturas físicas da festa podem ter ficado montadas enquanto a crise se iniciou, e seus vestígios estão em pé até hoje, criando uma espécie de festa “fantasma”, uma triste lembrança dos momentos que a cidade era viva.

Outra abordagem, mais esperançosa e alvissareira, permite que a comunidade aproveite os dias em que o evento costumava acontecer para comemorar sua resistência. Durante um pequeno período a comunidade festeja, gerando uma parada nas práticas rígidas que permeiam as rotinas dos sobreviventes. Claro que o narrador também pode aproveitar estes momentos de descuido para inserir uma invasão inesperada, seja de outro grupo de sobreviventes, de animais ou de infectados. O que seria do RPG sem os conflitos!?

No centro histórico da cidade onde eu moro existe uma procissão religiosa anual que causa uma comoção na região, mobilizando moradores e alterando rotinas de trabalho e trânsito. Um evento como este pode ser levado para o cenário de Terra Devastada: os infectados fazem frequentemente esse mesmo trajeto. Seria este comportamento uma memória vestigial? Uma tentativa de se comunicar? Uma esperança de conseguir uma cura ou redenção de sua condição inumana? Talvez isto sirva apenas para ilustrar, fazendo as personagens refletirem sobre a situação, ou pode ser um elemento crucial para a trama, afinal com esta informação é possível prever ou até mesmo controlar o comportamento das turbas de mortos-vivos.

Construções Históricas ou Conhecidas

Todo município possui prédios e outras construções que caracterizam a sua área urbana. Seja como um marco visual que ajuda a identificar a cidade ou como ponto de encontro. Uma escola com um pátio grande, a igreja com sua arquitetura antiga ou um prédio que serve como sede para repartições públicas. Todos acabam sendo um ponto de referência para a cidade e é vital para um RPG que será ambientado na região que eles sejam incluídos no planejamento.

O que será que aconteceu nesses locais desde o momento que o fim do mundo chegou na cidade? Os prédios podem estar em ruínas, tendo sido palco de um evento terrível como o embate das forças armadas com uma horda de infectados. Só a descrição um pouco mais detalhada de como um marco da cidade está destruído é uma ferramenta poderosa de imersão e ajuda a criar o tom da aventura.

A participação destes locais em Terra Devastada não precisa se manter como uma lembrança de eventos passados, o prédio pode servir como local de interesse para um trecho da história, para resgate de pessoas ou busca de recursos numa situação de emergência. Até mesmo a descoberta de sobreviventes vivendo de maneira isolada num desses espaços pode provar como o uso de uma construção bem conhecida pode ajudar no desenvolvimento da narrativa.

Se o prédio escolhido for grande e com boas possibilidades de defesa, muitas escolas são assim, ele pode servir como proteção para os sobreviventes da comunidade e pode ser a base para onde o grupo retorna após o cumprimento das suas missões.

Empresas e Organizações

Indústrias têm a vantagem de servir como local físico, similar as escolas, e podem indicar também a presença de recursos específicos que são valiosos num período de escassez. Mas além disso, podem inspirar na construção de personagens, ao adicionar características que só se tornam plausíveis devido a presença de uma organização na região que fomentou tal prática antes do fim do mundo.

Aproveite a história e economia da sua cidade para utilizar elementos que auxiliem a criar a proximidade da narrativa em Terra Devastada com o mundo real. Os seus funcionários podem também aparecer como infectados, e são reconhecidos pelo uniforme, crachá ou ferramenta que estão em posse.

Lendas da região

As lendas conhecidas e contadas na sua região podem ser aproveitadas para criar uma versão torpe dessas histórias no mundo de Terra Devastada. Aqui em Santa Catarina temos uma história que faz parte do folclore regional chamada de boi-de-mamão. Esta história é encenada por grupos regionalistas, algo como o Bumba-Meu-Boi do nordeste. Uma das personagens dessa história é a figura da Bernunça: um monstro, algo como um dragão ou bicho-papão com boca gigante que devora o que estiver pela frente.

Com o fim do mundo em Terra Devastada, parece que até a Bernunça surgiu para atormentar a região, deixando sinais de seus ataques. As pessoas locais que se deparavam com pedaços de corpos de pessoas e animais que pareciam ter sido parcialmente engolidos por algum animal enorme já estavam falando que isso era obra da Bernunça. Somente por intermédio da intervenção das personagens dos jogadores que a verdade acaba sendo revelada: os ataques eram provenientes de um grande jacaré acometido com o vírus.

Tornando o mundo dinâmico

Todos estes elementos devem estar inseridos na história de maneira harmônica, fazendo sentido e conectando-se uns com os outros. Ex.: O prefeito da cidade tomou conta do prédio da prefeitura, fechando o local e usando equipes, armamentos e veículos da guarda municipal para assegurar seu comando. Os sobreviventes que não chegaram a tempo se assentaram num imponente prédio antigo que servia como um museu, saqueando o comércio local para abastecer sua base com mantimentos. Este dois grupos disputam pelo controle da cidade, como forças antagônicas.

O uso da região conhecida como um ponto em comum é uma vantagem de campanhas ambientadas num mundo similar ao nosso mundo real, e se tornam ainda mais fáceis de implementar se são contemporâneas. As possibilidades de interação e criação com ambientações neste formato potencializam o RPG, dê uma chance para esta prática. Caso você já tenha feito alguma adaptação da sua cidade para o RPG, deixe seus comentários comentando como foi a experiência.

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