Por João Pedro Spagnolo

Atenção: este texto fala de transtornos psicológicos e pode envolver gatilhos emocionais. 

Um homem com Transtorno Obsessivo Compulsivo, uma criança inocente, um estilista preocupado, uma mulher afável. O que todos tem em comum? Provavelmente nada, exceto o fato de habitarem todos o mesmo corpo.

Essas personalidades somam-se em um total de 23 personas distintas para formar o complexo antagonista do filme Fragmentado, de 2016 dirigido por M. Night Shyamalan. Fragmentado é um terror psicológico que apresenta o sequestro de três adolescentes por um homem que se revela depois como Dennis, uma das personalidades de Kevin Wendell Crumb, que possui TDI, ou em termos técnicos: Transtorno Dissociativo de Identidade. No filme, algumas das personalidades se reúnem para contemplar o surgimento da 24ª identidade, conhecida como “A Besta”. Esta consegue alterar sua capacidade física e resistência corporal, sendo um apanhado de todos os animais do zoológico que Kevin trabalhava (Não é mais spoiler depois de cinco anos, né?).

Após essa sinopse improvisada, podemos nos direcionar para o que realmente importa: implementando o TDI na sua personagem. Entenda, alguns jogadores, com o passar do tempo, tornam-se experientes na criação de personagens. Enquanto alguns buscam ser os mais fortes, outros buscam pela experiência mais intensa possível no decorrer da aventura, um sadismo na criação da personagem se preferir, e é para esta parcela que direciono o conceito, vamos destrinchar essa característica:

Ambientação

Qual cenário/tema está sendo explorado? Os sistemas trazem diversas propostas, e criar seu personagem (no caso, personagens) deve levar em conta o gênero da aventura para que se entenda mais o transtorno da personagem e o que o causou. Por exemplo, Terra Devastada traz um cenário de horror moderno com questões humanas sob a óptica sobrevivencialista, já Rastro de Cthulhu (perfeito para o que estamos abordando) nos traz um horror inquisitivo, com investigadores encarando algo além da realidade humana, rasgando o fino véu de sua sanidade.

Não se limitando ao horror, podemos fazer uso do TDI em cenários de fantasia, cyberpunk, dentre outros; a ambientação aqui serve apenas como inspiração para entender as origens das personalidades que o jogador possuirá.

Personalidades

Falando das estrelas do espetáculo agora, as personalidades podem ser das mais variadas e distintas possíveis. Diferente do filme, tente se manter em duas ou no máximo três personalidades (se o mestre estiver de acordo), pode ser difícil conduzir uma sessão com tantas variáveis. A diversão surge em dois fatores da interpretação: o contraste e aleatoriedade.

Para o contraste, você deve se perguntar como será cada personalidade e como cada uma reage a outra: elas possuem conhecimento uma da outra? Quais são suas características mais marcantes, suas aspirações, desejos e medos, sua bússola moral será diferente para cada uma? Essas questões deverão ser determinadas para dar um maior senso de direção na interpretação da personagem.

A graça aqui está nas variadas combinações possíveis. Não tenha medo de se arriscar, já que numa mesma sessão você pode ser o médico e o monstro, ou duas pessoas completamente diferentes presas ao mesmo corpo. Uma pode ser religiosa, acreditar naquele aprisionamento como uma maldição, a outra é alguém indiferente a essas questões, querendo levar a vida o mais normal possível. As possibilidades são infinitas, não se limitando as capacidades físicas.

Em uma parte do filme, “A Besta” surge, demonstrando a plena capacidade da mente em alterar questões físicas, o que acaba por alterar o que um corpo pode ou não fazer. Agora imagine isto em sua personagem. Tenho dois métodos que serão explicados posteriormente, ainda temos que falar sobre personalidades.

Outro aspecto a ser levado em conta será o das origens e dos fatores que servem de gatilho para a troca das personalidades (ou como é chamado no filme: Quem está no holofote).

A origem e o gatilho compõem o fator da aleatoriedade na interpretação; o TDI pode ser associado a episódios traumáticos e situações de forte ação emocional durante a infância, como abuso crônico e grave (físico, sexual ou emocional) e negligência, ou ainda a perda importante precoce (como a morte de um dos pais), doenças crônicas ou outros eventos estressantes graves. Assim, certas coisas, objetos ou fatos podem servir para a transitoriedade entre as personalidades, provocando a troca como uma forma de defesa e distanciamento perante a situação, uma espécie de refúgio da realidade.

Por fim, antes de adentrar nos aspectos do RPG, o TDI apresenta algumas características importantes na hora de interpretar suas personagens, uma é o caráter das personalidades, que na forma de possessão apresentam-se como um ser, um espírito ou uma pessoa externos à pessoa “original”, sendo indesejáveis a ele, a outra questão é a amnésia dissociativa recorrente, onde uma personalidade tem sua memória interrompida enquanto outra está em foco, não tendo consciência dos atos umas das outras.

RPGzando

Noções básicas postas à mesa, vamos explorar essa opção que com certeza trará um desafio a mais para a aventura.

Primeiro o mestre: você planejou a aventura, garantiu que não havia lacunas, fez uma verdadeira obra de equilíbrio e perfeição, conseguiu com muito esforço reunir um grupo e todos confirmaram presença, tudo está indo bem e você, sentindo que a aventura será épica, decide gastar um dia inteiro fazendo props. No dia marcado, os jogadores começam a explicar suas personagens e um de seus convidados diz: – Minha personagem terá múltiplas personalidades!

Tomado pelo elemento surpresa você já pensa: “pronto, começou, minha aventura será largada ao destino”. Relutante aceita, “e… como se…serão essas per… personalidades?” Você pergunta, e recebe como resposta duas personas completamente distintas e com padrões morais que podem comprometer tudo. Como lidar com isso?

Fique tranquilo, o seu jogador deve ter vindo aqui ter essa ideia mirabolante e eu estou aqui para te trazer amparo. Entenda, o personagem tem essa característica das múltiplas personalidades mas, por via de regra, isso foge do controle dele. Então, alguém assume a função de quando o transtorno entra em ação.

Antes de mais nada, tenha anotado as personalidades e seus caprichos, o que serve de gatilho para a troca e, principalmente, em quais momentos da aventura a transição atrapalharia drasticamente a experiência. Com isso, você servirá de guardião da sanidade do jogador, determinando o quando será o “holofote” de cada persona.

Agora é a hora dos jogadores. A criação da personagem é um momento crucial para determinar a experiência durante a aventura. Os diversos sistemas possuem suas peculiaridades para essa criação, sendo a maioria determinada por uma rolagem de dados e distribuição de pontos, outros podem ser mais simples (como Terra Devastada, por exemplo). Independente do método de cada sistema, há uma receita para o TDI em jogo. Você precisará de mais de uma ficha para anotar cada personalidade, você seguirá o processo natural de criação de personagem mas distribuirá os pontos de maneira diferente para cada personalidade. Vamos exemplificar:

Em um jogo de Rastro de Cthulhu, os jogadores criam investigadores. Primeiramente escolhem uma ocupação original e depois gastam seus pontos de criação em suas habilidades. Márcio decide criar um investigador chamado Oscar, que era um Diletante vivendo de uma herança, e decide investir seu tempo livre investigando os Mythos. Entretanto, a personagem possui uma personalidade a mais, Dr. Jekyll, um homem que acredita ser um médico de guerra. Márcio sabe que a sua personagem nunca foi para a Escola de Medicina; entretanto, a personalidade não sabe disso, então o rapaz poderá gastar pontos nas habilidades de medicina pela forte convicção do Dr. Jekyll, mantendo a proporcionalidade.

Em outras palavras, Dr. Jekyll se aproximará de um autêntico médico, entretanto não terá a pontuação conforme um médico real, e quem fará essa medição é você jogador, e dependendo da devida situação você fará o polimento das personagens sob a expressão “dois pesos, duas medidas”, podendo alterar inclusive questões linguísticas e/ou físicas. Sua personagem pode ser um padre católico de setenta anos em uma de suas personalidades e um imigrante árabe marginalizado que não teve outra opção senão o crime. As combinações são infinitas, e quanto maior a diversidade, mais interessante será o desenrolar da personagem.

SIMPLIFICANDO…

Ainda há uma opção para você que encontra certos limites na criatividade: você pode realizar um tipo de sorteio em suas duas fichas para a outra personalidade. Funciona assim: Você irá criar sua personagem conforme queira. Na hora de criar a outra persona, role os dados para a criação e compare os resultados com os que você já possui, vendo o que muda de uma para outra. Assim você pode ter um halterofilista como outra persona ao ver que a força supera drasticamente a força original de sua personagem, ou ainda, em suas rolagens, a sorte parece ter abandonado os seus dados e sua Percepção atinge o menor valor possível. O que fazer com isso? Existem casos de pessoas com TDI que assumem deficiências e limitações podendo crer que são cegas, por exemplo, vivendo de acordo. Não há limite para o que a mente humana é capaz de criar.

Isso pode estar um pouco confuso, mas vamos facilitar: suas opções são criar duas personas e rolar dados/distribuir pontos de acordo, ou ainda, criar uma personagem e deixar a sorte criar a outra persona.

FRAGMENTOS

Vamos falar sobre consciência agora. Conforme dito acima, as personalidades não possuem memória do que a outra sabe ou faz, e em casos mais graves, o lapso de memória afeta até a percepção da existência de outras personalidades.  Você que vai jogar deve determinar o quão grave é a amnésia dissociativa e se a sua PJ sabe da existência da outra personalidade com que compartilha o corpo, lembrando sempre que deve haver a separação entre o conhecimento de uma e outra, sendo ainda mais difícil de se evitar o meta-game (quando o jogador usa informação que não fora obtida pela personagem e sim pela pessoa do jogador), uma vez que existem as informações não compartilhadas, obtidas por duas personagens distintas.

Por fim, faço uma consideração especial para que o jogador que vá interpretar uma pessoa com TDI: Esteja atento à dificuldade da tarefa. O transtorno causa muito sofrimento para seus portadores e torna a vida extremamente penosa., Tenha em mente que adicionar essa característica pode não ser recomendado caso você ainda esteja iniciando no RPG. Caso se sinta seguro para tal, desejo-lhe um bom divertimento, e lembre-se: “as personalidades são os que elas acham que são”.