Por Pedro Feio

Se não me falha a memória, quando joguei minha primeira partida de RPG, eu tinha por volta de 12 anos de idade. Todos os envolvidos eram da mesma faixa etária, pelo que não preciso dizer que as histórias que contávamos através das sessões eram simples e orbitavam em torno do clássico “bem contra o mal”.

Ao longo dos anos subsequentes, nosso grupo de RPG manteve-se relativamente com os mesmos rostos, à exceção de um aventureiro que partiu ou um novo que chegava. Junto com nossas histórias e personagens, fomos amadurecendo, entendendo e tomando gosto pelas nuances que existem entre a luz e a treva.

O arcabouço cultural crescia, as referências de filmes, livros, desenhos, história já jogadas aumentavam ano a ano. No entanto, meu grupo original viveu aquele fatídico momento em que as amizades de infância se veem alçadas ao desencontro por força dos caminhos que se separam quando ingressamos em diferentes universidades, mudamos e toda a sorte de trocas que a vida impõe nessa fase.

RPG NA VIDA ADULTA

Curiosamente, passado mais algum tempo, mais especificamente próximo ao meio da faculdade, nos reencontramos com uma finalidade: jogar RPG. A rotina nos limitava a encontros mensais, mas as histórias ganharam densidade de detalhes e matizes que as histórias de anos consecutivos de jogos em nossa infância não haviam sido capaz de construir.

Nessa ocasião a comparação foi inevitável, e a memória saudosa das nossas partidas singelas, presas em detalhes bobos e tramas ingênuas veio à tona. Incrível como o mais próximo de um tom “cinzento” teria sido um goblin que descobrimos supostamente inocente depois de termos “pernabundeado” até sua décima geração. E naquela ocasião estávamos enfiados em uma trama de proporções continentais de falsos profetas que em um culto secreto professavam outra religião, buscando reconstruir o legado de uma deusa macabra.

Se você se identificou minimamente com o texto até aqui, certamente está lembrando de suas próprias aventuras de RPG nos tempos de infância/adolescência, ou talvez não esteja tão distante desses tempos, e mesmo assim consiga perceber uma maior maturidade e complexidade nos seus jogos.

Acertei? Se sim, pense: Apenas as histórias que eram contadas eram diferentes de hoje ou a sua forma de participar e se envolver na história contada também mudou?

MUDANDO O PARADIGMA

Mas pense bem na pergunta. O que você pensava para criar a ficha da sua personagem? E hoje, no que pensa? Quando um combate ou situação de jogo que requer habilidades específicos de sua personagem surgia, como você resolvia a situação? E hoje, como o faz?

Para mim, a mudança nesse quesito também foi radical. Hoje, a mecânica pesa muito mais nas minhas escolhas. Não quer dizer que eu não tenha respeito pelos conceitos criativos por trás das minhas personagens, mas como todo jogador mais experiente, me pego pensando nas estratégias de jogo para obter êxito nos desafios da melhor forma possível.

Perceber isso é interessante. Eu sou o primeiro a dizer que o RPG não tem vencedores, que trata-se de um jogo cooperativo em que todos ganhamos quanto melhor e mais divertida for a história construída. Curioso, não? Conseguimos pensar assim e, no entanto, ainda temos grande esforço estrategista na construção mecânica do que acontecerá no jogo. Mas calma lá, não estou em guerra franca contra a mecânica de jogo. Deixa eu me explicar…

O FIM DA INFÂNCIA

Por vezes, adicionamos em meio a emulação mecânica de nossos personagens alguns traços e habilidades como meras ferramentas facilitadoras. Afinal, em algum momento vamos ter que chutar a porta e acertar umas contas de forma não tão amigável, ou pilotar um veículo desgovernado, ou raios, sair de alguma enrascada que seja. E quando isso acontecer, é melhor minha personagem sair viva dessa e, de preferência sair por cima da situação – afinal é MINHA personagem.

Ou seja, junto com nossa maior maturidade e complexidade das tramas, também vai entrando em ação, mesmo que subjetivamente, nosso lado gamer, estrategista. Queremos ter vitórias e êxitos. Não que em nossa infância não o quiséssemos, mas salvo exceções, a maioria de nós era muito neófita nesse troço de “jogo de interpretar papéis”, e estava bem afoita em começar a rolar uns dados para exercitar por muito tempo as nossas sinapses em busca de combos, truques, vantagens e toda a sorte de alavancas mecânicas.

E o que afinal pretendo com essa análise? Calma, não vamos rasgar os livros, ou desistir das histórias e das personagens que já estão aí rendendo encontros divertidos. Pelo contrário, acho que há algo aqui de valioso para tornar as sessões mais divertidas. E quem me ensinou isso foi um sábio rapaz, que do alto de seus 8 anos de idade tomou as decisões em jogo que mais afetaram os rumos da história que estava sendo contada.

A SABEDORIA DAS CRIANÇAS

Meu grupo habitual de jogo estava reunido. Desta vez, contávamos com a ilustre presença do filho de 8 anos do narrador. Afinal, há que se passar o hobby adiante, não? Nessa ocasião nos aventuramos em um mundo de fantasia medieval próprio (breve parênteses: essa ideia de mundo próprio como algo que faz sentido é um dos melhores deleites do RPG para mim). Nossas personagens tinham em comum apenas o interesse em vender sua força de trabalho à uma caravana para garantirem viagem até uma cidade próxima e claro alguns trocados.

Em determinado momento da viagem nos deparamos com um grupo de mercenários treinados e bem pagos liderados por um nobre, que tentaram a todo custo subtrair-nos não a carga, mas um dos viajantes. Foi assim que descobrirmos estar escoltando não mercadorias, mas nobres viajando às escondidas por razões que para o grupo restam por serem descobertas.

Como o líder do bando que nos atacou era um nobre, decidimos por levar os nossos antagonistas derrotados à justiça. Eis que interpretando o nobre contido por nós, o mestre deixou no ar a possibilidade de recompensas vultosas a quem se rebelasse contra o grupo e libertasse nosso inimigo. Afirmo tranquilamente que nessa estratégia havia apenas a intenção de interpretar e definir o caráter da personagem com a qual interagíamos naquele momento.

Nesse momento, o nosso pequeno sábio refletiu sobre seu personagem. Um ladino, cuja a ambição havia colocado ele em fuga da última cidade, motivo pelo qual vendeu seus serviços para a caravana. Seu salvo conduto com discrição para fora da cidade havia surgido com um brinde: um cheque em branco.

CONTROLANDO O DESTINO

Imagine-se no lugar da criança de 8 anos agora. Você olha sua personagem e as ambições dela. Percebe que interpretá-la te coloca em oposição aos outros 3 jogadores adultos presentes. As chances de êxito são baixas e você ainda precisa se insurgir contra o grupo. O que você faz?

Bem, nosso jogador não só interpretou seu personagem como levou a situação até suas últimas consequências, deixando a ficha e o personagem para a história do cenário como um antagonista, pronto a rivalizar com o grupo por muitas e muitas histórias. Nosso necromante surpreendeu o jovem ladino enquanto buscava libertar nosso opositor, e os dados e regras selvagens de Savage Worlds cuidaram para que a personagem de nosso pequeno jogador não só fosse derrotado, mas se tornasse um insano obcecado, vítima de magias terríveis.

CONCLUSÃO

Perder uma personagem que você criou com carinho e com quem tem se divertido é difícil e muitas vez optamos por ser “menos” a personagem, mas mantê-la por mais tempo viva na história. Nesse dia, contudo, com a naturalidade e inocência que só uma criança poderia ter, nosso jogador mirim desapegou de seu personagem em nome da história mais divertida e o deixou para sempre gravado na história de nosso cenário.

E você, está pronto para jogar como uma criança? Entregar-se inocentemente aos meandros da história, não importando se isso significará vitória ou derrota? Acredite, vai ser divertido.