Por Stefano Aires

A maioria das pessoas que entra nos universos mágicos do RPG quer uma fuga da realidade, deseja fazer coisas que não pode fazer em sua vida real. Quando construímos uma personagem, queremos que ele seja capaz de feitos épicos, queremos que seja capaz de matar dragões, pilotar naves intergalácticas, entortar barras de ferro de prisões impossíveis de fugir. Quando criamos aquela persona e lhe damos cor, personalidade, características sobre humanas, no fundo queremos fugir de nós mesmos e da monotonia da rotina do nosso dia a dia. Mas será que conseguimos?

EVOLUINDO

Joaquin Phoenix nos mostrou uma evolução espantosa – ainda que sombria – com seu Coringa

Recentemente terminei uma campanha de 3 anos e construí uma personagem bem diferente da personalidade que eu possuo (ou era o que eu queria). Ele era um ladino soturno, invisível, evitava falar ao máximo, uma sombra. Possuía um código de conduta exótico e tentava impedir que o mal prevalecesse. Inicialmente eu pensei a personagem como tática, metódica e estratégica. No entanto, à medida que a campanha ia se desenrolando, ela era a primeira a atirar as flechas, reagia de forma impulsiva e, sem pensar, lidava com as situações como se fossem preto e branco e de forma extremada, passou a agir cada vez mais de forma intransigente. Ao final das sessões eu pensava: “Será que ele agiria desta forma?”

Sempre me interessei muito em seguir as linhas psicológicas que eu traço para as minhas personagens e na medida do possível sempre me perguntava: “como ele agirá frente a essa situação?”. A medida que a campanha se aprofundava e que íamos nos apegando aos personagens, eu me via fazendo escolhas que iam além do que foi planejado para o mindset do personagem. Ele estava ganhando vida e evoluindo com os eventos que iam sendo apresentados. Normal, o caráter dele estava sendo formado como acontece conosco diariamente (pensava eu). Mas até que ponto aquelas decisões eram causadas pelo descolamento da realidade que o RPG proporciona, e até que ponto elas eram traços da minha personalidade que eu desconhecia ou que não aparecem com frequência devido as amarras e aos limites que nos são impostos socialmente?

O REAL E O IMAGINÁRIO

Poucas fugas da realidade foram tão intensas quanto a de Bastian Balthazar Bux em A História sem Fim

Quando partimos pro universo do faz de conta, certas responsabilidades desaparecem, o peso da vida e da morte deixam de ser um dilema real e passam a ser apenas um guia, a violência pode se tornar banal e coisas que você não faria em base diária passam a ser triviais. Suas barreiras são derrubadas. Em partes porque aquele universo permite isso, porque as leis da física não se aplicam, por que a morte não é definitiva, pelos elementos sobrenaturais ou até mesmo porque tudo é mágico! É aí que devemos inverter as perguntas. Será que VOCÊ não tomaria as mesmas decisões que o seu personagem se estivesse na mesma posição que ele? E se aceitar o emprego na nova cidade fosse o chamado para aventura daquele velho na taverna, que poderia custar muita coisa pro seu personagem. E se disparar a flecha contra aquele desafeto em jogo é na verdade aquela relação tóxica que você gostaria de cortar, mas não consegue?

Quanto de nós mesmos levamos para jogo e quanto conseguimos desligar e deixar fora da mesa? Essas questões têm povoado a minha cabeça recentemente, e a verdade é que provavelmente não temos as respostas exatas. Alguns estudos em psicologia e metodologias educacionais utilizam o RPG como ferramenta, e muitos com sucesso. A lógica é, talvez, simples: nossos personagens são criações pessoais e de alguma forma refletem desejos subconscientes ou traços psicológicos que possuímos. Longe de ser uma relação direta, roubar alguém no jogo não significa que você é mau caráter ou tem tendências cleptomaníacas. Talvez aquilo seja algum objetivo que você quer muito alcançar na vida real? E talvez signifique que na realidade você não pode tomar os atalhos que toma no jogo pra conseguir aquilo?

OS DOIS LADOS

O RPG não precisa ser, e normalmente não é, uma válvula de escape sem um significado maior. Podemos utilizá-lo como momento de catarse e construir um bárbaro esmagador de crânios que não quer pensar muito e apenas eliminar os obstáculos que lhe são apresentados. Claro que podemos, e às vezes precisamos, desse surto de ideias desordenadas e de machadadas desvairadas para desanuviar as incertezas cotidianas. Mas também podemos aprender a utilizar essa força enraivecida pra vencer nas nossas lutas diárias. Que peguemos nossas forças e poderes ficcionais para engrandecimento pessoal e real.

E porque não utilizar os aspectos negativos também? Aquele momento sombrio do seu mago que foi tocado pelas trevas, ou o momento que em que seu soldado não conseguiu resgatar com sucesso os companheiros do outro pelotão. As derrotas talvez nos fortaleçam mais que as vitórias, os erros dos personagens podem ser nada mais que alicerces para consolidar caminhos que não devam ser tomados jamais e desta forma apresentar alternativas e raios de esperança para seguir em frente. As sagas aventurescas são nada mais que isso: Esperança. Uma esperança diária de que teremos a sabedoria dos sacerdotes, a força do bárbaro, a vontade do mago e a sagacidade do ladino. Esses momentos de lucidez podem ser e são ferramentas valiosas construídas por você.

REFLETINDO NA VIDA REAL

Nestes três anos de altos e baixos, meu grupo enfrentou vitórias e derrotas, desafios impossíveis e perdas terríveis. Eu também. E vários outros membros do meu grupo também. Em momentos difíceis, personagens brigavam, discutiam, tomavam rumos sombrios e questionáveis. Alianças com demônios foram feitas, escolhas violentas foram tomadas, em circunstâncias que na minha vida tudo que eu queria era um atalho fácil, um basta. Essas rotas me tornaram uma pessoa pior? Não, mas me fizeram questionar. E eu dei novos rumos para o personagem e pra vida. O grupo se ergueu e se fortaleceu. E tenho certeza que saímos pessoas melhores, que agora sabem um pouquinho a mais dos seus limites e pontos de ruptura. Personagens inseguros se tornaram resolutos, erros viraram acertos. E nós… nós saímos com certeza melhores. Nem que fosse “uma dúvida a menos”, “um riso mais feliz”. Esses pequenos centímetros de progresso nos deram novas possibilidades.

A minha ideia ao escrever esse texto não foi estabelecer uma relação direta de nossas psiquês com as personas que criamos em jogo. Muito menos de prover respostas ou certezas. O objetivo é sim de estabelecer uma relação saudável de como as simbologias que nos são apresentadas e os caminhos que são tomados por via destes símbolos podem nos mostrar sutilezas de nossos subconscientes. Será que uma reflexão ponderada sobre nossos jogos e personagens não poderia ser utilizada para amenizar momentos de angústia ou indecisão? Quando aquele dragão apareceu você fugiu ou lutou? Não seria melhor lutar com o “dragão do seu dia a dia”? Talvez não, talvez devamos fortalecer nosso grupo, nossas relações familiares e pessoais e buscar meios de vencer aquele dragão de forma racional apesar das limitações proporcionadas pela realidade.

A proposta é reparar mais nos caminhos que tomamos na vida e no jogo e como eles se auto refletem e que informações podemos retirar dos dois para que as nossas vidas, em todas as realidades que escolhermos viver, sejam leves e épicas!