Por Franco Gugliemoni
Particularmente, gosto de como a Cultura Pop se apossou dos Mythos de Cthulhu e Carcosa, ignorando as obras originais e as mentes pouco progressistas e bastante limitadas que as escreveram. Essa apropriação se mostra extremamente prolífica, tendo em vista a quantidade de criações e produtos gerados. Entre contos e novelas, filmes, romances, séries e jogos, todos desconstruindo, ressignificando ou reimaginando os horrores Lovecraftianos e Chamberianos.
O Rei Amarelo – Paris” entra para esse clube do novo imaginário moderno, sendo um RPG de suspense e horror investigativo, que se utiliza das regras do Sistema GUMSHOE, inspirado nas obras ficcionais do escritor estadunidense Robert W. Chambers, autor do homônimo “O Rei de Amarelo” e outros contos. Paris, que remete tanto ao título quanto à ambientação, é o primeiro de quatro cenários ambientados em diferentes períodos da história da humanidade. No Brasil, o jogo e seus quatro cenários estão sendo publicados pela Retropunk Publicações.
Cada capítulo do livro Paris foi contemplado nesta resenha, que está segmentada em sete categorias: Introdução; Sistema; Narrando o Jogo; Período e Locação; Carcosa e os Segredos do Rei; Sequência Paris; e Indo Além.

INTRODUÇÃO

REALIDADES ESTILHAÇADAS, EGOS DESTRUÍDOS
Esta breve seção serve como tutorial e carta de apresentação sobre Paris, seus mistérios, seus Moderadores e Jogadores, e claro, suas regras. Gostaria de comentar brevemente sobre o trecho que trata do hobby RPG, o que é e como jogar, onde se sugere a busca por aventuras via streaming, abundantes internet afora. Achei um exemplo didático, palpável, sem a necessidade de pilhas de textos pouco intuitivos.
SISTEMA
O Rei de Amarelo oferece um vislumbre do cenário a ser investigado. Também apresenta as regras do GUMSHOE QuickShock, como a criação de personagens, o uso de habilidades investigativas, regras e condução de jogo. De modo geral, o sistema se mantém familiar para veteranos de longa data, fazendo poucas, mas significativas alterações e bem-vindas adições. Para os recém iniciados, é um excelente ponto de partida. Direto e dinâmico.
UM UIVO DE CARCOSA
Há dois modos de jogo: Horror (mais difícil e exigente) e Aventura Oculta (menos punitivo, mas pouco agradável). Os personagens possuem algumas diretrizes em relação às suas nacionalidades. O jogo sugere jogar com estadunidenses, mas está aberto a receber qualquer nacionalidade, incluindo franceses. Essas diretrizes servem para estabelecer o tom, e não para barrar culturas. Esse tom reside no que chamarei de “fator estrangeiro”, logo, conhecer Paris e se deslumbrar com a cidade tem duas camadas: a camada experienciada pelo jogador e a camada experienciada pelo personagem, ambos estrangeiros, alheios aos segredos locais, vulneráveis às seduções da Cidade das Luzes.
Para a criação de personagens, existem dois tipos de Kits: os Investigativos e os Gerais. Cada jogador deve escolher, respectivamente, um Kit de cada categoria. Ou seja, um Kit Investigativo e um Kit Geral, que juntos compõem seu personagem. Em Paris, o cerne está em personagens que emulam os mundos das artes, literatura, poesia e a boemia. Evidenciado pelos Kits Investigativos disponíveis: Estudante de Arquitetura; Beletrista; Pintor de Paisagens; Musa; Poeta; Pintor de Retratos; e Escultor. Já os Kits Gerais oferecem uma customização extra, outras habilidades que permitam a interação com o mundo ao redor.
Há ainda dois aspectos da criação de personagens que merecem atenção: ‘Uma questão particularmente peculiar’ e ‘Relacionamentos’. O primeiro é um evento misterioso e sinistro, de natureza sobrenatural que aconteceu recentemente com o personagem. O segundo serve para estabelecer as relações entre cada um dos personagens dos jogadores. Estes dois aspectos, apesar de singulares, se mostram fundamentais para os personagens, ajudando a estabelecer o tom e a natureza do que os jogadores irão enfrentar. Incluir como um requisito, facilita a vida dos moderadores e encoraja jogadores menos engajados.
REGRAS DO JOGO
Já ouviu falar nas linguagens do amor? Sabe qual é a linguagem do amor de um Moderador de Jogo? Tempo de qualidade. Sabe por quê? Porque em GUMSHOE QuickShock o Moderador nunca rola dados. E não rolar dados significa mais tempo narrando a história e descrevendo coisas, ou seja: tempo de qualidade.
Em minha limitada experiência com Rastro de Cthulhu, o GUMSHOE é um sistema do qual gosto por conta do foco investigativo. Logo, a versão moderna e ágil apresentada em O Rei de Amarelo me manteve cativado pelo sistema. Sendo o tempo algo tão valioso e “escasso”, a adição das mecânicas de cartas para Ferimentos e Traumas traz um excelente recurso para gerenciamento de combate. Cartas garantem agilidade e dinamismo durante o jogo, ao invés de rasuras infinitas nas fichas. Basta ler a carta e seguir jogando. Também são um recurso físico, visual, que ajudam a lembrar que personagem X possui dois ferimentos e personagem Y um punhado de traumas. Outra nova resolução é a necessidade de um único teste de Combate. Chega de rolagens quase infinitas a cada turno.
NARRANDO O JOGO
Como explicado na própria introdução do capítulo, esta parte trata de dicas e orientações de nível introdutório/iniciante para a condução da sequência Paris (ou de qualquer sessão de Rei de Amarelo). A bem da verdade, mesmo veteranos podem se beneficiar de ler e reler esses trechos. Gosto de pensar que sempre podemos aprender algo novo ou reaprender sob uma nova perspectiva. De todo modo, o livro e cenário “O Novo Normal” oferece esse mesmo suporte, mas direcionado a Moderadores mais calejados.

PERÍODO & LOCAÇÃO

PARIS DA BELLE ÉPOQUE
Obras de época requerem uma certa “preparação”, em especial na hora de emular o período abordado. Neste capítulo encontramos um excelente guia sobre a Paris da Belle Époque. Há descrições diversificadas, dos assuntos mais triviais aos mais relevantes, sobre os hábitos da época, contextos históricos, folclore local, estilos de vida e cotidiano, saúde, segurança, boemia, pontos turísticos, curiosidades e peculiaridades. Vislumbres de beleza, riqueza, elite e miséria da capital francesa. Há também uma extensa lista (com notas e descrições) sobre personalidades (reais e ficcionais) disponíveis para povoar as investigações e interagir com os jogadores.

CARCOSA E OS SEGREDOS DO REI

O REI, SEU PLANO E QUEM O SEGUE
Este capítulo se dedica à mitologia de Carcosa e seu Rei, mergulhando na obra de Chambers, enquanto oferece reflexões e recursos para auxiliar moderadores de jogo na hora de planejar os segredos da Corte Carcosiana e afins. É comentado brevemente sobre a relação do Rei de Amarelo com o Mythos de Cthulhu, de Lovecraft, e em como Paris e cenários subsequentes buscam se emancipar do Mythos compartilhado. Já o capítulo seguinte conta com uma galeria de oponentes, sobrenaturais e mundanos, encontrados nas ruelas e cantos sinistros da Cidade das Luzes.

SEQUÊNCIA PARIS

FANTASMA DA GARNIER
Finalmente, chegando ao que talvez mais interesse, temos a sequência ambientada em Paris, chamada de “Fantasma da Garnier”. Diretamente inspirada, mas decisivamente distinta, do romance do francês Gaston Leroux, “O Fantasma da Ópera”. Na trama, o grupo dos personagens decide investigar os bastidores de uma ópera em produção chamada Cassilda (uma adaptação da peça in-game chamada O Rei de Amarelo). É claro que isso leva a uma rede de intrigas, drama e mistério, recheada dos já citados suspense e horror Chamberianos.
Não vou entrar em maiores detalhes para que jogadores desavisados (ou xeretas) permaneçam no escuro e descubram os segredos durante suas próprias investigações. Aos moderadores, espero que seja o suficiente para injetar a semente do interesse. O que sim posso e devo dizer é que a sequência apresenta personagens interessantíssimos e aborda diversas particularidades da época e local na qual transcorre; e do submundo onírico da vida boêmia, das artes e do teatro. Fiquei verdadeiramente maravilhado e, enquanto espero pelo lançamento, me vejo ansioso para encarnar Paris e seus artistas contra os horrores de Carcosa.

INDO ALÉM

MEIA-NOITE EM PARIS
Lançado em 2011, o longa (Midnight in Paris, no original) dirigido por Woody Allen conta a história de Gil (Owen Wilson), um escritor fracassado e roteirista de Hollywood que viaja para Paris com sua noiva Inez (Rachel McAdams) e seus sogros. Certa noite, caminhando pelas ruelas, Gil encontra estranhos e juntos rumam a uma festa, que ele acredita ser temática, por conta dos trajes anos 20 e o carro antigo. Logo ele percebe que esses estranhos eram o casal F. Scott Fitzgerald (Tom Hiddleston) e Zelda Fitzgerald (Alison Pill). Na festa conhece outras celebridades e faz amizade com ninguém menos que Ernest Hemingway (Corey Stoll). Fascinado, mas ainda confuso com a volta no tempo, Gil pede para Hemingway ler seu manuscrito em desenvolvimento e a partir disso, acontece uma sucessão de eventos inusitados e divertidos. Ele agora passa os dias (em 2010) com a noiva e seus amigos, e as noites (em 1920) com personalidades do mundo elíptico e boêmio. O elenco ainda conta com: Marion Cotillard; Adrien Brody; Léa Seydoux; e Kathy Bates.
UMA ESTRANHA COINCIDÊNCIA
Apesar do jogo ser um suspense investigativo e o filme uma comédia romântica, ambas as obras tem Paris como cenário, a arte como tema central e esquisitices bizarras como fio condutor da trama. Pensando nisso, o filme pode oferecer bons ganchos e inspiração suficientes para sustentar um cenário de aventuras macabras em Paris. O Moderador pode querer adaptar a trama do longa para uma história horripilante, usando versões distorcidas dos personagens do filme como elenco de apoio, ou permitir que os jogadores interpretem os personagens.

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