Dica de Mestre: Interlúdio
Interlúdios: Uma ótima ferramenta para criar laços entre os personagens dos jogadores
Por Luis Arévalo
O que é um interlúdio?
Ao criar um personagem o jogador entrega ao narrador da partida a ficha de seu personagem e uma breve descrição do passado dele. Um bom narrador vai fazer uso desta descrição para criar momentos ao longo do jogo onde o personagem pode ganhar destaque e ser conhecido pelos outros jogadores ao longo das partidas.
Mas há outro modo de fazer com que seus jogadores conheçam os personagens uns dos outros e é aqui que entra em cena uma poderosa ferramenta chamada de interlúdio. Agora, do que se trata isto e porque usar tal ferramenta em suas partidas de RPG?
Um interlúdio é uma cena que ocorre entre os momentos de drama e ação de uma narrativa, conferindo uma “pausa” ao espectador para que descanse antes que a trama principal seja retomada. Não é incomum encontrar interlúdios em narrativas heroicas, seja em filmes ou mesmo séries de televisão. Estes momentos são apresentados como cenas curtas onde os personagens da história conversam entre si, revelando alguma coisa do seu passado ou desenvolvendo algum aspecto de suas personalidades.
Os Benefícios do Interlúdio
Como mencionei acima, o interlúdio serve para apresentar algum aspecto de um personagem e desta forma seu valor para a experiência de jogo é inestimável. O RPG se trata de um jogo de interpretação de papéis, toda a aventura se passa na imaginação do grupo e muito da diversão depende do comprometimento de todos para dar vida à história.
O narrador fica encarregado de dar vida aos personagens não jogadores (NPCs) e de conferir sentido e emoção à trama da aventura, mas cabe aos jogadores conferir vida a seus personagens. Quanto mais soubermos a respeito de um personagem, melhor. E um interlúdio faz justamente isto, ele dá a oportunidade que cada jogador precisa para apresentar seu personagem ao grupo, mostrando aos poucos quem ele é na história.
A cada interlúdio novas facetas de um personagem são apresentadas, dando cor e vida a ele e dando ainda mais motivos para que os demais jogadores sejam cativados. Após algum tempo, aquele personagem que inicialmente era apenas “O guerreiro” do grupo se transforma em algo novo e mais completo. Interlúdio após interlúdio mostram que esse guerreiro luta contra tiranos porque viu sua família ser morta por ordem de um, ele também demonstra sensibilidade ao revelar que aprendeu a lutar para obter justiça, mas na verdade gostaria de ter seguido a carreira de músico, além destes pontos o jogador pode trazer mais e mais aspectos sobre o personagem que criou e isso tudo é apresentando de uma forma natural no decorrer do jogo, através de diálogos em momentos onde seria normal ver em uma narrativa um personagem conversando com outro.
Se coloque no lugar de um jogador e pense no seguinte. Você e seus amigos se reúnem para jogar com certa frequência e é estabelecido que todos são um grupo, uma equipe e devem se comportar como tal. Mas por que você faria isso? Você acha que é mais provável você se arriscar por uma pessoa que conhece e com a qual já partilhou histórias de vida? Ou se arriscar por um completo desconhecido? Eu penso que a primeira proposta é melhor.
Da mesma maneira que os jogadores o narrador também ganha muito com os interlúdios, graças a eles fica mais fácil de se conhecer as particularidades de cada personagem, indo além dos atributos desenhados na ficha. O narrador passa a conhecer cada personagem em um nível mais pessoal e com este conhecimento em mãos é muito mais fácil criar histórias que signifiquem alguma coisa para o jogador daquele personagem.
Interlúdio Selvagem!
O primeiro sistema que conheci que sugere o interlúdio como ferramenta de narrativa foi o Savage Worlds.
Em Savage Worlds o narrador é incentivado a usar interlúdios em momentos de tranquilidade, onde seus jogadores não estão sendo perseguidos ou atacados por inimigos, momentos onde podem respirar com calma e se dar ao luxo de conversar de forma descontraída.
Os jogadores recebem um tema que guiará o tom do prelúdio, decidido ao acaso com o uso de um baralho onde cada naipe simboliza um tema (Paus = Tragédia, Espadas = Vitória, Copas = Amor e Ouros = Desejo). Após desenvolver sua cena o jogador é recompensado por seu esforço e o grupo como um todo aprende alguma coisa sobre o passado ou aspecto daquele personagem. Além disso, o grupo também se fortalece como uma equipe onde cada um conhece aquele que luta ao seu lado.
Indo Além
Os temas apresentados no sistema de interlúdios de Savage não são os únicos que podem ser usados, servem como um guia e com o tempo seu grupo irá estar tão familiarizado com esta ferramenta que talvez nem precise mais destas diretrizes para guiá-los.
Você também não precisa usar interlúdios como é proposto em Savage Worlds, adapte o recurso ao seu estilo de jogo e ao de seus jogadores. Se um jogador não se sente à vontade de desenvolver o seu com um tema escolhido de forma aleatória, permita que ele escolha o tema que mais lhe agrada.
Temas aleatórios também podem causar situações estranhas, por exemplo, já tive uma mesa de jogo onde quatro jogadores receberam seus temas de interlúdio de forma aleatória. Três deles tinham que falar sobre alguma tragédia pessoal enquanto o último deveria falar sobre uma vitória. Imagine a dificuldade do último jogador para iniciar seu interlúdio. Como ele ia falar de algo que o deixava feliz e orgulhoso depois de ouvir três histórias tristes de seus companheiros? Resolvi este problema ao permitir que os jogadores escolhessem de antemão o tema a ser abordado.
Da mesma forma que em Savage Worlds, outros sistemas de RPG podem se beneficiar de interlúdios sem dificuldade alguma.
Os jogos voltados para o drama pessoal são os que mais se beneficiam deste recurso, como por exemplo os jogos de horror pessoal da White Wolf. Vampiro: A Máscara é uma narrativa à respeito de amaldiçoados que precisam conviver com um monstro interior que não os deixará em paz até ter destruído cada resquício de sua humanidade. Imagine dois vampiros discutindo sobre suas experiências de vida e sua luta contra a besta, percebe como apenas este tema já se enquadra como um interlúdio?
Em Rastro de Cthulhu os jogadores assumem o papel de investigadores do sobrenatural que vão aos poucos perdendo sua sanidade. Um dividindo os horrores que já presenciaram com os outros também é um ótimo interlúdio.
No RPG nacional de zumbis, Terra Devastada, o drama é uma das ferramentas mais fortes. Nele somos apresentados a personagens já calejados (ou nem tanto) pelo apocalipse zumbi, mas quem eram eles antes do mundo virar um inferno? Mais uma vez, os interlúdios cabem aqui como uma luva.
Quero Ver Isso na Prática!
Tudo bem, agora que você já sabe o que é um interlúdio é possível que queira ver um exemplo prático de sua aplicação, certo?
Imagine uma aventura de fantasia medieval, o jogador que interpreta o anão guerreiro está em uma missão de reconhecimento em uma floresta ao lado da jogadora que interpreta a ranger caçadora do grupo. A missão deles é estudar o terreno e aprender as vantagens que este pode ofertar na batalha que irá acontecer dali a alguns dias. O narrador decide que este é um bom momento para um interlúdio e cada jogador saca uma carta de um baralho.
O jogador que interpreta o anão tem um naipe de espadas e deverá contar uma história que envolva algum tipo de vitória ou conquista pessoal. A jogadora da caçadora fica com um naipe de copas e na sua vez de falar, sua história terá como tema central o amor.
Então o anão decide contar à caçadora sobre uma história de seu passado onde ele e seu irmão Dreredrim estavam perdidos em uma floresta igual a aquela, junto de alguns primos. Eles fugiam de orcs que os perseguiam e se esconderam naquelas matas para tentar sobreviver. Dreredrim tinha encontrado alguns frutos pequenos e estranhos que decidiu comer porque estava com muita fome e o grupo não tinha permitido que ele pegasse algo nos suprimentos já escassos que tinham, afinal, não sabiam quanto tempo teriam que ficar escondidos. Ao descrever o aspecto dos frutos, a ranger se dá conta de que se trata de frutinhas que causam diarreia naqueles que os ingerem.
O anão ri ao se lembrar de como seu irmão passou por momentos constrangedores e todos pensaram que ele estava se “cagando de medo dos Orcs”, o que lhe rendeu um apelido muito ruim. No entanto, esse momento constrangedor deu uma boa ideia ao anão e ele então escondeu um pouco das frutas dentro das carnes que o grupo tinha para comer e deixou sua mochila para trás, para que os orcs a encontrassem. Como esperado, os inimigos colocaram as mãos em suas coisas e comeram toda a comida encontrada, rindo de suas presas por terem perdido seus suprimentos. Todos os orcs passaram mal após a refeição e isso conferiu aos anões uma chance perfeita para atacar, pegando os odiados inimigos de surpresa. O anão conclui dizendo que aquele foi o golpe mais “sujo” que já usou em sua vida, mas que lhe rendeu a vitória.
A jogadora da ranger se diverte com a história e também relata como ela mesma descobriu os efeitos daquelas frutas. Infelizmente seu aprendizado aconteceu na prática quando ela às comeu durante um acampamento com a irmã e um moço de sua vila de quem gostava. A ranger diz que depois de passar mal na frente de todos, o garoto a ajudou a se recompor e lhe ensinou sobre as propriedades daqueles frutos e como tirar proveito deles. Depois da vergonha, ela pensou que nunca mais teria coragem de olhar o garoto na cara, mas o evento acabou aproximando os dois e ele se tornou seu primeiro namorado. Alguém de quem ela ainda gosta muito e que foi forçada a deixar para trás quando se tornou uma aventureira.
Os dois jogadores podem ter inventado essa história do nada, mas o importante é que agora o anão e a ranger dividiram lembranças e se conhecem um pouco mais, um laço de camaradagem foi forjado entre os dois e ele pode aumentar cada vez mais com o tempo!
As histórias narradas durante o interlúdio não precisam estar conectadas de forma alguma, neste exemplo apenas aproveitei um elemento da narrativa do anão para iniciar a história da ranger. Isto é uma forma de tornar o diálogo entre os personagens mais natural.
Para o grupo como um todo a experiência apresenta momentos que dão cor aos personagens de seus companheiros, transformando um anão guerreiro e uma ranger em muito mais do que atributos e habilidades rabiscados em uma folha de papel, agora estes personagens possuem mais vida na imaginação dos outros jogadores. Você prefere se lembrar de um anão guerreiro pelo valor que ele tem em seu atributo de força ou porque ele já derrotou um bando de orcs com uma estratégia constrangedora e mirabolante? Quando você e seus amigos estiverem conversando e relembrando as sessões de jogo, o que acha que vai estar mais vivo em suas memórias?
O narrador também se beneficia muito com o que seus jogadores trazem em cada cena de interlúdio. Imagine a surpresa do jogador que interpreta o anão ao entrar em uma taberna e escutar um outro anão contando para uma plateia a história de como ele derrotou sozinho um bando enorme de orcs, mas no caso, este contador de histórias é Dreredrim! Pense na cena que pode se desenvolver aqui. O jogador vai deixar seu irmão se safar com sua versão fantasiosa do que aconteceu naquela batalha?
Da mesma forma, imagine a surpresa da ranger quando algumas sessões de jogo mais à frente o narrador apresentar um grupo de caçadores de recompensa que estão perseguindo um bandido, cujo desenho no cartaz de “procurado” mostra a imagem perfeita do jovem que ela mencionou em seu interlúdio!
Em resumo, percebeu como interlúdios trazem cor e personalidade aos personagens dos jogadores? E como também são pedaços de informação que o narrador pode ou não usar como um tema para futuras aventuras? Experimente usar esta ferramenta em seus jogos e te garanto que a diversão será ainda maior para todos!