Por Mikka Capella

Eis que estamos no Pride Month, o Mês do Orgulho LGBT, e a Retropunk me incumbiu da tarefa de escrever um artigo para celebrar a ocasião. Sim, a Retropunk é uma empresa preocupada com a diversidade e está antenada com as principais questões sociais da nossa época. Essa é uma das razões de porque tenho tanto prazer em escrever e produzir material para eles.
Antes de qualquer coisa, é importante a gente dizer porque é tão fundamental marcar ocasiões como esta, do Mês do Orgulho LGBT. Aliás, antes de qualquer coisa, é importante dizer o que significa Orgulho LGBT; porque quem vive fora do vale* não entende do que se trata e, quando escuta a palavra “orgulho” associada à sigla LGBT+, pensa que se trata de orgulho de uma orientação sexual fora do padrão. Daí, vemos coisas como “orgulho heterossexual”, que é mais ou menos análogo ao “racismo reverso”, à mamadeira de piroca e à terra plana…

O Orgulho LGBT não é sobre ter orgulho de uma orientação sexual. Não faz muito sentido sentir orgulho de uma coisa que não depende de você, sabe? Porque, sim, meus amores, para quem não sabe, ninguém escolhe ser homossexual, ou bissexual, da mesma maneira que ninguém escolhe ser heterossexual.
Nós não escolhemos por quem somos atraídos ou por quem nos apaixonamos. Entretanto, apenas nós, homossexuais, bissexuais e etc., precisamos “nos assumir”. Esse, diga-se de passagem, é um momento bastante complicado para todas as pessoas LGBT, como dizemos, o momento de “sair do armário”; e é complicado porque demanda a possibilidade da não aceitação da família – as pessoas que mais importam – e, muitas vezes, a ameaça real de sermos expulsos de casa porque não somos o que esperavam que a gente fosse…

Essa é a primeira de uma longa lista de coisas pelas quais pessoas LGBT+ passam simplesmente por amar fora do padrão… Só para citar algumas, há muitos lugares no mundo em que a nossa afetividade é uma característica grave o bastante para acharem que pessoas como nós merecem a pena capital (Maria Antonieta feelings). E, mesmo onde somos teoricamente aceitos, enfrentamos a reprovação silenciosa de quem está convencido de que somos aberrações simplesmente por amar de uma forma diferente.
Nós precisamos, muitas vezes, mentir quem somos para não perder empregos, para não perder amigos, para não sofrer uma agressão na rua. Enfrentamos uma privação incompreensível de direitos civis básicos, que todo cidadão que paga impostos tem ou devia ter, por exemplo se casar e constituir família. Tudo por causa da maneira de amar, algo que não escolhemos e que não afeta a vida de ninguém, a não ser a nossa.

Parece bobo que uma característica tão particular cause tanta dor de cabeça, não é? Mas essa é a nossa realidade. Somos sobreviventes e é por causa disso que temos orgulho. Porque, apesar de tudo, estamos aqui, lutando para construir uma sociedade melhor e mais justa para todos.

POR QUE FALAR DE DIVERSIDADE?

Vira e mexe, nos grupos de RPG de que participo, alguém posta sobre diversidade nas mesas. Invariavelmente os posts acabam sendo “polêmicos”, com centenas de comentários – e respostas aos comentários – agressivos, debochados, visivelmente incomodados simplesmente porque alguém levantou a possibilidade de falar sobre diversidade numa mesa de jogo.
Gente, why?

Jogos de RPG sempre trataram sobre os mais diversos tipos de situação e pessoas. Conspirações, revoltas, corrupção, psicopatas (muitas vezes dentro do grupo de personagens jogadores), assassinos, ladrões (esses são, inclusive, classes de personagens em certos jogos), qual o problema com pessoas LGBT?

Romance heterossexual nunca foi um tabu em mesas de RPG. Eu era menor de idade e consigo me lembrar de um sem-número de cenas picantes protagonizadas por personagens de colegas com NPC´s cheias de volúpia; mas se aquele bárbaro musculoso olhar com cobiça para o edy* do elfo, noooooossaaaaaaaa!!!!!!!

No fundo a gente sabe porque isso acontece. Eu disse a palavra ali em cima: “aberração”. Curiosamente, formas diferentes de amar causam mais mal-estar do que sangue esguichando e tripas esparramadas. Isso diz alguma coisa sobre a mentalidade da nossa sociedade e porque é tão importante falar sobre essas questões e trazê-las sempre que possível. É o único caminho para normalizá-las, para que pessoas LGBT+ possam, um dia, deixar de ser piores que um demogorgon devorador de criancinhas no imaginário da galera.

PARA VOCÊ FICAR MAIS ESPERTO

A sigla LGBT+ comporta uma variedade muito grande de pessoas e afetos. Nem todas as letrinhas dizem respeito às mesmas questões, então, pra facilitar pra você, a gente coloca a coisa toda em duas categorias: Orientação Sexual e Identidade de Gênero.
É bem simples! Orientação Sexual é sobre para que lado corta a sua espada (sacou a referência?)! É sobre o que você gosta. Se você é, por exemplo, um rapaz que gosta de moças, outros rapazes ou as duas coisas, isso é a sua orientação sexual. Agora, se você é um rapaz que nasceu uma moça, ou uma moça que nasceu um rapaz, isso é identidade de gênero. Identidade de gênero é sobre quem você é.

Dizemos que um rapaz que nasceu rapaz e acha bacana ser rapaz é uma pessoa cis. Já um rapaz que não nasceu rapaz, nasceu moça, mas não achava bacana ser uma moça, é uma pessoa trans.
Pessoas trans são a letra T na sigla e também têm uma orientação sexual que pode ser hétero, homo ou bissexual. Existem homens trans que são gays (gostam de rapazes) e mulheres trans que são lésbicas (gostam de moças). Existem, também, aqueles que se atraem por ambos os sexos, exatamente como as pessoas cis. Orientação sexual é uma coisa, identidade de gênero é outra. Ambas são independentes.

COMO LIDAR COM A QUESTÃO LGBT+ NUMA MESA DE RPG?

Essa é a pergunta mais fácil de todas: da mesma forma que você lida com a questão heterossexual – com naturalidade!
Nada daqueles estereótipos ridículos que a gente está acostumado a ver. Uma vez fui assistir a uma mesa de Vampiro: A Máscara e fiquei terrivelmente constrangido pela maneira caricata com que o Narrador interpretava todos, absolutamente todos os NPC’s do clã Toreador…

Sabe, a sexualidade dos PJ’s geralmente é irrelevante para o plot de uma aventura. Isso acontece tanto no caso de personagens heterossexuais quanto homossexuais. Outra coisa que é absolutamente irrelevante? O gênero. Na maioria dos jogos, não faz muita diferença se você está interpretando uma mulher ou um homem. Mesmo assim, nós optamos por jogar, na maioria das vezes, com um gênero ou outro; com uma orientação sexual ou outra.

Por mais que possa ser irrelevante para o plot, existe a dimensão do indivíduo, sem a qual nenhum personagem tem profundidade. São características da nossa psiquê, que dão mais poder de identificação e tornam a experiência mais imersiva, mais interessante.
Isso significa que você tem que ter um personagem LGBT+ em todas as suas mesas, necessariamente? Não! A gente não está aqui falando de cotas. Cada um deve fazer aquilo com o que se sente mais à vontade. Mas é legal você pensar o seguinte: em TODAS as suas mesas você tem personagens heterossexuais. Isso te traz algum incômodo? Se não, qual é o problema com os homossexuais?Tudo o que nós queremos é ser tratados do mesmo jeito, com a mesma naturalidade. A coisa mais bacana dos jogos de RPG (em minha modesta opinião, é claro) é que ele nos dá a oportunidade de passar algumas horas na pele de um herói. E se esse herói for, pelo menos um pouco, parecido com a gente, a experiência se tornará inesquecível.

Eu nunca vou me esquecer do quanto foi impactante quando descobri, acho que na sexta temporada de Voltron, que o Shiro, um dos paladinos, era gay. Vejam bem, isso era algo tão irrelevante que só foi dito, de maneira muito casual, na sexta temporada da série! Mesmo assim, teve um impacto enorme sobre mim. Eu já gostava da animação e do personagem, depois disso passei a amar.
A verdade é que nós, pessoas LGBT+, não estamos acostumados a ser (bem) representados. Isso deve ser algo difícil de entender pra quem sempre soube o que era ter todas as referências de que precisava. Pense por um segundo, quantos dos seus heróis eram parecidos com você? Seu número, com certeza, é bem maior do que o meu.

A RETROPUNK E O SEU CATÁLOGO MULTICOLORIDO

“Agora essa gay forçou a barra”, você deve estar pensando! Calma, padawan. Deixa o tio molhar o bico.
A Retropunk tem muito orgulho de ter no seu catálogo jogos que em sua premissa original já trazem o conceito de diversidade implícito. Hora de Aventura é, sem dúvida, o maior nesse quesito. Outro, que precisa ser mencionado, é o Castelo Falkenstein.
Castelo Falkenstein se passa numa Europa vitoriana, que seria essencialmente machista, sexista e lgbtfóbica. Porém, a Europa do cenário não é a mesma que nós conhecemos, mas a Nova Europa – um continente muito parecido com o do nosso próprio mundo, que existe, entretanto, numa realidade paralela. Pela Nova Europa, circulam pessoas, fadas, anões e dragões com poderes mágicos antiquíssimos. Todos os livros de ficção oitocentista são biografias e autores dividem o mesmo mundo com seus personagens.

A Nova Europa é um mundo (quase) perfeito, desprovido de preconceitos e onde cada um é livre para viver a sua verdade. Prova disso é que um de seus NPC’s principais, o rei Luís da Baviera, como todos sabemos, era homossexual no mundo real.
Castelo Falkenstein, todavia, não é um jogo LGBT+. Hora de Aventura também não é. E eu acredito, com todas as minhas forças, que nós não precisamos de um jogo LGBT+. Não é disso que se trata. Eu não acredito em jogos LGBT+, porque também não acredito em jogos cis/hétero.

Jogos de RPG são mundos de histórias e aventuras e eu acredito que a palavra “mundo” encerra um grande poder semântico. Mundos são grandes o suficiente para caber uma diversidade enorme de possibilidades. É disso que se trata, afinal: diversidade!
Assim, o que te impede de fazer um sobrevivente transgênero a procura de seu amor desaparecido no mundo arruinado de Terra Devastada? Um rato gay em Mouse Guard? Um soldado bissexual entre os horrores de Weird Wars II? Ou uma investigadora lésbica em Rastro de Cthulhu?

Apesar de HP Lovecraft ter sido uma pessoa de mentalidade absurdamente tacanha em seu próprio tempo (não me venham com contexto de época, please. Tanto o sufragismo quanto a luta contra o racismo já existiam desde o século XIX), se você leu Providence, sabe que Allan Moore provou magistralmente que a diversidade cabe até no mundo sombrio dos Grandes Antigos.
É por causa disso que o catálogo da Retropunk é multicolorido. Seja na imensidão gélida de Winter Eternal ou nas areias escaldantes do deserto envenenado de Newhon, há espaço para todas as cores, todas as formas de ser e de amar.

Terminaremos este manifesto com os mais sinceros votos de um excelente mês do Orgulho LGBT para toda a comunidade LGBT+. Que um dia, em um futuro não tão distante, nós possamos deixar de ser sobreviventes para ser, apenas, viventes. Até lá, celebremos a vida, com todas as suas cores. Cor é luz. Preconceito é escuridão.

Se interessou? Gostaria de conhecer e jogar alguns dos títulos citados com seus amigos? Corre pro site e escolha já o seu favorito!

>> https://retropunk.com.br/loja/10-terra-devastada

>> https://retropunk.com.br/loja/pesquisa?controller=search&s=weird+wars

>> https://retropunk.com.br/loja/7-rastro-de-cthulhu

>> https://retropunk.com.br/loja/76-

>> https://retropunk.com.br/loja/72-colecao_hda

 

Imagens de capa by Jade. Para quem quiser conferir os trabalhos da artista basta acessarem esse link.