Por Fábio Medeiros

TRANSFORMANDO A SUA CAMPANHA DE RPG NUM MULTIVERSO

A concepção de Multiverso é bem complexa, muitas pessoas usam com diferentes sentidos e para cada pessoa existe uma maneira diferente de compreender. Para fazer um recorte mais específico, a ideia aqui é tratar dos universos que são criados a partir de diferentes possibilidades de desfecho para uma ação. Similar ao que ocorre no Multiverso do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Não entra aqui a visão de multiverso criada pela existência de planos existenciais como Céu e Inferno, o local para onde vão as almas e onde vivem deuses e demônios. Temas como esses também são interessantes, mas merecem uma discussão separada para aproveitar todo o seu valor.

Eu sempre me interessei por histórias que brincavam com a existência de diferentes versões, como a série What If que fará parte da fase 4 do MCU. Esta série animada irá reimaginar as histórias que conhecemos, porém com uma mudança considerável. Já está confirmado que na primeira temporada haverá uma história em que o soro do supersoldado teria sido aplicado na Peggy Carter, e não em Steve Rogers. A DC já fez algumas histórias nesse estilo, como os quadrinhos Superman: Entre a Foice e o Martelo (Superman: Red Son no título original) em que a nave que trouxe o bebê de Krypton acaba aterrissando na União Soviética.

Quando eu fui ao cinema assistir Batman vs Superman com meu filho, ele ficou muito impressionado com os acontecimentos na batalha final (não vou dar spoilers, mas quem viu sabe do que estou falando). Para ajudá-lo a compreender um pouco sobre o que aconteceu, falei que o que havia ocorrido no filme era uma versão de uma história, não significa que era um evento que marcaria os heróis ali presentes em todas as situações. Nesta hora ele recordou do Homem-Aranha, citando que nos primeiros filmes ele tinha a teia saindo do próprio braço e na versão “espetacular” ele criou um lançador de teias para isso. Pouco depois que chegamos em casa ele me chamou para seu quarto e mostrou uma encenação da batalha final do filme. Ele mesmo criou, com seus bonequinhos, um cenário com acontecimentos diferentes, da maneira que ele gostaria que tivesse ocorrido.

A agência que o Thomas sentiu ao reencenar a história foi muito poderosa, lhe dando muito empoderamento e satisfação. Defendo a ideia que deveríamos criar essas possibilidades no RPG, o poder deve ser dos jogadores. Se para isso torna-se necessário que mundos paralelos sejam criados, que assim seja!

Dois Mundos Paralelos

Minha inspiração para lançar uma proposta dessas nas minhas campanhas de RPG surgiu da leitura de Entremundos, primeiro livro de uma trilogia do Neil Gaiman. Na campanha que eu estava mestrando na época, os jogadores viviam num mundo pós-apocalíptico, que se tornou assim devido as ações do homem que descobriu a magia – o Primeiro Mago. No final da campanha, o mago do grupo (um personagem de jogador) usou uma magia no estilo “Desejo” e imaginou um mundo em que a magia não teria sido descoberta por esse homem. Para os personagens isto não mudou muita coisa, mas um universo paralelo foi criado onde a magia não havia sido mantida escondida e proibida. Começamos a jogar em seguida uma campanha de viagem nos planos, e o mundo em paralelo criado está incluso na cosmologia.

No caso descrito a ideia aproveitada não ficou como mundos infinitos, mas sim como duas versões de um mesmo mundo. Isto poderia explicar, por exemplo, a existência do Mundo Invertido na série Stranger Things: é uma versão do nosso mundo em que alguma coisa deu errado, ou até mesmo algum acontecimento catastrófico que tenha dividido um único mundo em dois.

A viagem entre os dois mundos pode ser um ponto principal em campanhas de dois universos, algo do outro lado está “transbordando para cá” e a única forma de resolver é viajar até lá e eliminar o mal pela raiz. Os jogos de videogame da série Ni No Kuni (O Outro Mundo, numa tradução livre) trabalham com esta proposta, e todas as criaturas em nosso mundo têm uma alma gêmea no outro, compartilhando aparências e personalidade.

A lista abaixo não é exaustiva, mas abre espaço para muitas maneiras de incrementar as histórias com elementos de mundos paralelos podem ser levados para o RPG de mesa de várias formas:

(1) A pedra fundamental de uma campanha, que determina a viagem entre os mundos como uma solução para o problema percebido pelos personagens;

(2) O mundo existe e aparece eventualmente no cenário, mas sem grande efeito para a campanha central;

(3) Só existe como pano de fundo, para o surgimento de personagens, monstros e itens que são encarados apenas no mundo dos protagonistas.

PERSONAGENS DE OUTRO MUNDO/ TEMPO

Outra possibilidade que se abre ao pensar em multiverso é a criação de personagens que se aproveitam disso para justificar diferenças em sua concepção. Alguns dos personagens vieram de um universo paralelo, e por isso tem alguma diferença marcante. No livro Entremundos existem várias versões do personagem principal, cada uma delas é originalmente de um mundo diferente. Uma das versões é mais forte fisicamente, outra é uma mulher, há ainda a versão em que ele possui asas, ou aquela em que o protagonista tem orelhas pontudas e visão aguçada.

Além das mudanças relacionadas aos atributos físicos do personagem, deve ser levado em consideração a diferença entre o que ele sabe sobre o mundo de onde ele vem e a versão em que ele está. As pessoas que ele conhece bem no seu mundo, aqui podem nunca o ter conhecido.

No MCU ocorreram situações em que os personagens se aproveitam do que sabem sobre o mundo, como o Capitão América em Vingadores: Ultimato, ele aproveitou o fato de saber que os personagens no elevador eram agentes da Hydra para conseguir pegar o cetro do Loki sem necessidade de mais um combate exaustivo; se bem que ele “poderia fazer isso o dia todo”. Já a Gamora que veio do outro mundo e não passou pelos acontecimentos dos filmes dos Guardiões da Galáxia, não conhecia o Star Lord, sendo incapaz de sentir a afeição que foi construída depois de tantas aventuras juntos.

Questões como estas podem levantar bons momentos para interação durante sessões de RPG, bem como apontar motivações para os jogadores e tramas que ajudam a desenvolver a narrativa. Há a possibilidade de fazer uma leve pausa na história principal para que possamos conhecer uma outra versão de nossos personagens adorados.

Em Hora de Aventura, o episódio Fionna e Cake (o 9º da 3ª temporada) apresenta todos os personagens com o sexo trocado. Ao invés de Finn – o Humano e Jake – o Cachorro as personagens principais são Fionna – a Humana e Cake – a Gata. Apesar de no fim do episódio ficar claro que esta era uma fan-fiction que estava sendo narrada pelo próprio Rei Gelado enquanto Finn e Jake estavam congelados, o episódio fez muito sucesso, tendo sido dado continuidade em mais alguns episódios e as personagens são muito vistas em cosplay.

Numa das campanhas que narrei, os personagens fizeram uma viagem planar e, na chegada no outro mundo, cada um deles se transformou num animal que escolhi de acordo com as características de personalidade deles. Neste caso, a viagem (ou as características do local onde estavam) os alterou fisicamente, mudando consideravelmente suas capacidades. A mudança se deu somente enquanto os personagens estavam no universo alternativo, durando apenas uma sessão de jogo, para que os jogadores não se sentissem prejudicados permanentemente pelas escolhas feitas por mim que alteraram significativamente seus personagens.

A presença de mundos paralelos e realidades alternativas traz novas camadas de complexidade as histórias, mas sendo utilizadas de maneira bem planejada pelo narrador pode promover muita diversão para o grupo, enriquecendo a campanha de maneiras que um único mundo linear não é capaz.