Por Vitor B. Mattos

“Uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e sem mistura, uma autêntica polifonia em que cada voz transmite uma parte completa em si mesma…” [onde] “a consciência do herói é representada como algo diferente, a consciência do outro. Ao mesmo tempo, não a objetiviza, não se limita a si mesma, não é reduzida ao estado de um objeto dentro da consciência do autor.”

Essa citação é de Bakhtin sobre a narrativa de Dostoyevski, mas muito poderia ser a descrição uma seção de um jogo de RPG. Como Dostoyevski colocava em suas obras vozes dissonantes de personagens construindo uma narrativa, nós como mestres/narradores mediamos vozes dissonantes de nossas personagens com as das personagens do grupo de jogadores, deixando estes (e não nós) construir sua narrativa.

E eu particularmente acredito que uma boa narrativa, ou uma boa arte em geral, é a que traz algo verdadeiro em si, transforma profundos pensamentos em fortes emoções, e vice-versa.

Não basta criar uma narrativa e um mundo se não se pode acreditar neles. Repousa nas mãos do mestre ou narrador essa tarefa, e não importa o quão absurdo seja esse mundo, ele tem que ter um poder de persuasão, de fazer-se acreditar. Isso não quer dizer que tudo deva estar ao alcance da compreensão e razão das personagens e jogadores, nem necessariamente do mestre, mas sim que esse mundo criado ou adaptado pelo narrador pareça vivo, de alguma maneira, e suscite na mente esse algo verdadeiro em nós.

“[…]“Ser radical – diz o jovem Marx em sua crítica a Hegel – significa tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o próprio homem.” O imenso poder social da literatura consiste principalmente em que nela o homem surge sem mediações, em toda a riqueza de sua vida interior e exterior; e isso num nível de concretude que não pode ser encontrado em nenhuma outra modalidade do reflexo da realidade objetiva.”

Maximo Gorki vê no “sentimento do mundo – a emoção que precede o conhecimento do mundo próprio da lógica intelectual – (o que) os conduzirá, naturalmente, a se apropriar da lógica das ideias que estão na essência das coisas.” O nosso dever como mestres e narradores é, além de mediar as vozes polifônicas como Dostoyevski, fazer vivo esse “sentimento de mundo”, esse “radical”, que é o próprio humano, para nossos jogadores.

A maneira pela qual os jogadores experimentarão esse “sentimento de mundo” é pela Narrativa, que funciona como uma espécie de ponte dialética: esse mundo, e seu sentimento, só pode existir (ser realizado) se uma narrativa o comparte ao Outro e, ao mesmo tempo, a narrativa só pode existir a partir desse mundo e do sentimento que ele traz. Quando esse Outro é um jogador, que tem poder de interagir e mudar, a Narrativa passa a ser criada por ele também e, a partir dessa reapropriação da narrativa, o jogador-personagem vai tanto mudar o Mundo quanto ser mudado por ele. Esse dinamismo é o que vai fazer o jogo ser memorável e desejado de se jogar mais, é o que vai carregar esse “radical” humano. E uma boa construção desse mundo (worldbuilding) é o que vai tornar a narrativa natural e imanente (a narrativa vai surgir como parte do mundo, todos seus elementos contidos nele a princípio) e vai tornar mais fácil ao narrador a narrativa (Também um tanto mais trabalhosa a preparação, mas acho que vale a pena).

Não vou me centrar aqui (ainda) a dar dicas de Worldbuilding, da construção de um mundo, principalmente antes da interação com o Outro, os jogadores. Quanto a isso, apenas uma dica: esse mundo deve ter história: deve ter condições e contradições inerentes e capazes de fazê-lo mudar-se por si, e a narrativa que Você, narrador, quer contar deve, de alguma forma, já estar acontecendo ou estar a vias de acontecer mesmo sem a interferência dos jogadores: personagens vivos, gerações de personagens mortos, condições e contradições – econômicas, políticas, sociais, biológicas, cósmicas, mágicas – que geraram, geram e gerarão mudanças.

Sobre História, Prática e Mudanças

“(…) o mundo sensível em seu redor não é objeto dado diretamente para toda a eternidade, e sempre igual a si mesmo, mas antes o produto da indústria e do estado da sociedade, isto é, um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações.” (Karl Marx – A Ideologia Alemã)

O mundo sensível não é apenas objeto de contemplação, mas é realizado e apreendido através da atividade humana sensível, da prática revolucionária… E o mundo fictício, também. Todo o ponto de se criar um cenário de RPG é para que este seja apreendido não pela contemplação de um objeto dado, mas pela prática revolucionária (no sentido de prática que gera mudança) de seus personagens.

“(…) a realização de um enredo, de uma verdadeira ação, conduz inevitavelmente a fazer com que experiências e sentimentos sejam submetidos à prova do mundo exterior, sejam pesados na balança de sua ação e reação sobre a realidade social (…).”(Lukács, 2010)

As vozes polifônicas de Dostoyevski são aqui também práticas polifônicas, colocadas a prova no mundo exterior, causando ações e reações nessa realidade social, que apreendem o mundo e seu sentimento a partir da prática, que gera mudanças em consequência, transformando o mundo, a realidade social, e sendo por ele transformado.

É importantíssimo abraçar essa polifonia, a voz e prática livre e independente dos personagens dos jogadores e dos mais importantes personagens do mestre, e abraçar a transformação que elas e eles podem e devem gerar no mundo, pois assim eles fazem do seu mundo o deles. A narrativa deve se concentrar aí, girar ao redor das ações e escolhas livres (mesmo que um pouco dirigidas) dos personagens e surgir imanente dessas ações e escolhas como consequência das mesmas. Enfrentando a realidade social, os personagens em suas ações criam como consequência seus aliados e inimigos, acordam antigos problemas ou criam novas condições e contradições para a continuidade, vencendo ou perdendo, querendo ou não, para bem ou para mal. Tais consequências são as provas de que seus personagens viveram e agiram, são os mecanismos pelos quais o mestre responde as personagens de jogadores e assim os realiza, os faz reais.

Diferentes Abordagens

Existem diferentes abordagens em diferentes literaturas e mídias sobre o lugar da mudança e da prática geradora de mudanças das personagens. Vão existir diferentes abordagens para se lidar no seu jogo também, não existe uma melhor que a outra aqui, é importante conhecer o que seus jogadores e jogadoras querem, conversar com eles sobre tom e expectativas.

Quando a Mudança não é central e talvez nem exista. Quando se ignora muito do que eu disse até aqui e não se quer, a princípio, construir uma narrativa grandiosa, apenas uma experiência divertida. São comédias, no sentido de que tudo vai terminar bem. São narrativas em que um conflito surge e é rapidamente resolvido e tudo volta ao normal no próximo episódio – como boa parte de desenhos animados, comics de super-heróis e séries de comédia. As vezes seus jogadores só querem matar monstros e roubar tesouros sem pensar muito sobre. Isso não faz, de jeito nenhum, essa narrativa ruim, pode muito se refletir através delas sobre questões essenciais da condição humana, – Para Hegel a ‘comédia é o reino do ético’ e para Marx, o meio de libertar-se ‘serenamente’ do passado – os personagens podem, mesmo que voltando ao ponto inicial, estar drasticamente mudados em seu interior e as poucas mudanças periféricas, geradas como consequência de suas ações, podem apenas parecer resolvidas, e voltar a morder as personagens, talvez criando uma campanha de mais fôlego, que balance esse status quo.

Quando a Mudança é central mas não é livre. Quando um ponto final é dado de início – Predestinado – e algo extremamente trágico vai acontecer os jogadores querendo ou não, os levando a morte ou a loucura. Não é necessário que os personagens saibam disso, mas eles podem aprender esse destino e lutar contra ou a favor dele; os jogadores, entretanto, devem talvez ser alertados se realmente não há escapatória. É típica de histórias de terror ou tragédias gregas, a questão se torna como e quando essa perdição chegará. Várias vezes é auto-profética e essa luta contra ou a favor do destino é o que o causa acontecer. A Mudança é uma finalidade, tem papel central que move toda a narrativa e pode ser inteiramente fruto da prática livre dos personagens e suas consequências, mas não é livre em si, não pode ser em si mudada, é final. Em narrativas Lovecraftianas, como num jogo de Rastro de Cthulhu, é bem propícia essa abordagem: personagens tentarão solucionar mistérios que só gerarão mais dúvidas até ficarem insanos ou acordarem poderes que serão sua perdição; e mesmo se pararem os cultistas e derrotarem o monstro, isso foi insignificante no infinito cósmico e é só questão de tempo até os Antigos acordarem.

Outro Exemplo

(Spoiler de Terror em Anhanguera à seguir)

Na aventura “Terror em Anhanguera” de Terra Devastada, as ações investigativas dos protagonistas (personagens de jogadores) tem como consequência, a parecer inevitável, a abertura dos portões e invasão de infectados. Mas claro, um grupo cauteloso de jogadores pode planejar e tomar escolhas que previnam isso… ou estão apenas adiando o inevitável?

Quando a mudança é central à narrativa e a prática das personagens é livre, que vão tomar posição frente a essa mudança. As personagens protagonistas podem estar a favor de uma mudança revolucionária contra um status quo visto como “mau” (V de Vingança, Clube da Luta, a trilogia original de Guerra nas Estrelas, etc.); ou podem estar a favor de salvar o mundo, o status quo, contra uma mudança vista como má (Senhor dos Anéis, Harry Potter, maioria das histórias de super-heróis, etc.); ou defender o mundo e parte do status quo exige luta por mudança revolucionária (Avatar: Lenda de Aang); ou as personagens podem estar divididas frente a essa mudança (Watchmen); ou ter várias personagens lutando por ou contra mudanças em seu favor (Crônicas de Gelo e Fogo / Game of Thrones). Independente de qual posição os personagens tomarem, mesmo se mudança central for impedida, alguma coisa, algum elemento, vai ser mudado. É inevitável a transformação histórica.

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” (Karl Marx – 18 de Brumário)

A partir de jogar RPG podemos, mesmo que talvez de forma escapista, romper a alienação e estranhamento com o fazer história: enquanto que no mundo real somos tão atropelados pelos acontecimentos fora de controle que nos achamos impotentes, jogando RPG podemos ver que a história é um processo consciente e prático e que temos poder sobre a mesma.

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